Era 1998, um pedido judicial feito por uma família de Israelândia, no oeste goiano, repercutiu nacionalmente. Na época, os pais de uma menina de 10 anos enfrentaram autoridades, religiosos e a opinião popular para que a criança conseguisse fazer um aborto após ser abusada sexualmente. Em entrevista à época, ela contou sobre os crimes.
“Eles falam assim, que se eu não fosse, eles vinham me buscar. [Ele] dava um real e bolacha. [Eu sentia] medo”, relatou a menina.
Na época, um homem de 65 anos e o amigo dele, de 52 anos, foram presos. Eles negaram o crime.
Os suspeitos foram indiciados pela polícia e denunciados pelo Ministério Público.
A menina estava com 14 semanas de gestação quando a família entrou com pedido de autorização judicial para que pudesse fazer o aborto. A cirurgia aconteceu em outubro do mesmo ano em um hospital localizado em São Paulo, quando a menina estava com 18 semanas de gravidez.
Abusos e gravidez
Os abusos contra a menor começaram quando a menina tinha 7 anos de idade. As reportagens explicaram que, na época, a menina ficava sozinha em casa no período da manhã enquanto os pais trabalhavam e os irmãos mais velhos estudavam.
De acordo com uma reportagem do O Popular, a menina era “atraída” até a casa de um dos homens com a ajuda de uma amiga dela, de 11 anos, “que era obrigada a buscá-la”. Após os abusos, as meninas ganhavam balas, bolachas e 50 centavos cada uma.
A gravidez foi descoberta após a mãe levar a menina a um posto de saúde para diagnosticar uma infecção vaginal. No entanto, o médico que atendeu a criança suspeitou da possibilidade de uma gravidez, que foi confirmada por uma ultrassonografia.
Luta judicial
A família ficou sabendo da gravidez da menina em agosto do mesmo ano. Após a prisão dos suspeitos na época, a principal preocupação dos pais era o bem-estar da criança. Por isso, a mãe e o pai lutaram para que a menina conseguisse fazer o aborto. No entanto, o processo não foi fácil.
“Ao mesmo tempo que o promotor me diz que a decisão só depende de mim e da minha mulher, na verdade as coisas não acontecem assim. Ou eles não me entendem ou não concordam comigo. O fato é que está tudo muito difícil”, lamentou o pai da menina à época.
A importância da decisão judicial a favor do desejo da família foi resumida nas palavras do juiz da comarca de Israelândia. Na época, ele admitiu que “em princípio”, a realização do aborto legal não dependia do pronunciamento judicial. No entanto, “o problema é que nenhum médico faria o aborto sem essa autorização”.
Ainda em setembro, o juiz de Israelândia autorizou o aborto e entendeu que a Justiça precisava ser rápida no caso.
“Embora a lei não estipule um prazo limite para a interrupção da gestação, o bom senso determina que o caso exige urgência”, disse o juiz, segundo publicado pelo jornal O Popular.
Após a Justiça de Goiás permitir o procedimento, um promotor de Justiça entrou com recurso da decisão que autorizou o aborto. Na ocasião, ele negou ter entrado com o recurso por estar “cedendo a pressões de religiosos” e afirmou que “agiu por convicção jurídica”. No entanto, segundo informado pelo jornal O Popular, esse recurso “sequer chegou a ser apreciado”, uma vez que o Código Penal permitia o abuso no caso de estupro. Com isso, a realização do procedimento não configuraria crime.
Busca
Após a demorada luta judicial por uma autorização pelo procedimento, a família passou a buscar médicos que realizassem o aborto.
Na época, um integrante da Sociedade Goiana de Ginecologia e Obstetrícia explicou que, mesmo o aborto sendo possível até o quinto mês, nenhum médico deveria querer realizá-lo. Um ginecologista também chegou a criticar a “interferência da Igreja, políticos, Justiça e até dos meios de comunicação” no caso, apontando que o “barulho em torno do assunto” estaria impedindo a garota de realizar o aborto.
Os médicos de Israelândia se negaram a fazer o procedimento. Foi no último dia de setembro de 1998 que a menina viajou para São Paulo com a família para passar por avaliação e tentar realizar o procedimento em um hospital da capital paulista.
A decisão de realizar o aborto da criança foi tomada pela comissão de abortamento legal do hospital em São Paulo, após a menina passar por uma análise médica e psicossocial, além de exames médicos, laboratoriais e de uma ultrassonografia. Esses exames indicaram que o feto não apresentava anomalias e que o aborto não traria risco à saúde da menina.
Aborto
O procedimento finalmente aconteceu na manhã do dia 3 de outubro de 1998. De acordo com a advogada da família, a cirurgia foi feita por dois ginecologistas e ocorreu por meio de uma microcesariana e a menina recebeu anestesia geral.
Na ocasião, a advogada ainda disse que não foi necessária a autorização da Justiça de São Paulo para realizar o aborto.