Terça-feira, 26 de novembro de 2024
Por Redação O Sul | 5 de outubro de 2024
O maluco, assassino e desafinado social Coringa, novamente interpretado por Joaquin Phoenix no filme de Todd Phillips, mostra-se capaz de se apaixonar perdidamente nesta segunda parte da série, inspirada na DC Comics de Bob Kane e Bill Finger. A musa é Harley Quinn, a Arlequina vivida por Lady Gaga, e a continuação ganhou no Brasil o subtítulo de Delírio a Dois.
Pois se trata mesmo de um delírio, precedido por uma introdução em forma de desenho animado, e que depois mostra Arthur Fleck, nome civil do Coringa, preso num manicômio judiciário, à espera do julgamento pelos crimes cometidos na primeira parte da história.
Aliás, boa parte desta continuação será um filme de tribunal em que se decidirá se Fleck pode ou não ser responsabilizado pelos crimes do Coringa, sendo a dissociação de personalidade o cavalo de batalha de sempre nas discussões entre médicos psiquiatras e membros do Poder Judiciário.
O tom delirante imprimido à primeira parte, prossegue na segunda. Muda o contexto e, de certa forma, também o gênero. Temos agora, como novidade, uma comédia dramática musical que justifica a escalação de uma cantora, como Lady Gaga, para o principal papel feminino.
No entanto, o segundo filme não é apenas a segunda face do primeiro; é sua desconstrução. Em “Coringa 1” temos Arthur Fleck edificando a persona do Coringa. No segundo, o Coringa deseja voltar a ser Arthur Fleck. Com isso, cai na pior das armadilhas: sua amada é fã do Coringa, não de Arthur Fleck.
Nesse sentido, “Delírio a Dois toma novo caminho. Do ponto de vista formal, com a predominância de canções e danças coreografadas pela dupla. Por outro lado, esvazia-se o caráter político do primeiro em favor de um discurso amoroso que, comovente e dilacerado, compromete o caráter crítico do anterior.
De certa forma, essa transformação é uma medida de ousadia. Evita uma continuação do tipo “mais do mesmo”, em especial quando se trata de um primeiro filme de grande sucesso, tanto de público como de crítica e prêmios. Coringa 1 venceu o Festival de Veneza e deu o Oscar de melhor ator a Joaquin Phoenix. Em escala global, rendeu mais de um bilhão (!) de dólares. Só no Brasil, levou mais de 9 milhões de espectadores aos cinemas.
Como brincar com um sucesso colossal como esse? Pois Phillips ousou fazer algo diferente. O começo da história de Coringa 1 era a de um revoltado, com problemas mentais, cômico falido que, por seus crimes, ao matar três jovens investidores da bolsa que molestavam uma mulher no metrô, e, depois liquidar um entrevistador de TV, ao vivo, virou ícone dos esquecidos pela sociedade. E, involuntariamente, líder de uma rebelião popular, que não se transforma em revolução porque esses rebeldes sabem o que não querem – mas ignoram o que desejam.
Com sua carga simbólica, Coringa 1 falou a um mundo em transe, em que os “deixados para trás pela sociedade” saíram do anonimato para as ruas e colocaram em xeque a política tradicional. Gotham City simbolizava esse mundo em dissolução, envenenado pelo ressentimento, com sua rebeldia dos palhaços, com o mais louco entre eles como seu ícone supremo.
De certa forma, Delírio a Dois é inspirado pelo desejo de um certo apaziguamento, aspiração social compreensível depois de tanto transe seguido e inútil. Mas seria injusto dizer que tende de modo acrítico à normalidade, mesmo porque a personalidade do Coringa, desenhada por Kane, revista por Phillips e interpretada de forma genial por Phoenix, é refratária a essa tentativa de recondução aos bons valores domésticos.
Essa vontade pode até ser expressa em partes do discurso do Coringa, que deseja voltar a ser Arthur. Mas não figura no rosto e no corpo convulsivo do ator, que expressam todo o seu desespero. No fundo, é um personagem dividido, em luta consigo mesmo, e nessa cisão está a beleza do filme.