Os péssimos serviços da Enel após fortes chuvas em São Paulo, que deixaram 3,1 milhões de imóveis sem luz em São Paulo, serviram de pretexto para uma ofensiva do governo Lula contra a independência das agências reguladoras. Criadas durante as privatizações no governo de Fernando Henrique Cardoso, elas foram instituídas como órgãos do Estado para supervisionar e disciplinar o comportamento de empresas que deixaram de ser públicas, várias delas monopolistas em suas áreas de atuação. Desde o início de seu primeiro governo, em 2003, o presidente Lula rejeitou a ideia de não poder controlá-las, mas há o risco de conseguir o que quer agora, no terceiro mandato.
O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, é o principal e contundente porta-voz do desejo oculto do presidente Lula. Silveira ameaçou intervir na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) porque em vários momentos não cumpriu suas determinações, como se ela devesse obediência ao ministro e como se o titular do Ministério tivesse poderes de intervenção. “Uma coisa é autonomia, outra coisa é o que querem ter no Brasil, supremacia, soberania individualizada”, disse o ministro. “Não acredito nesse papo furado de autonomia”.
O Executivo não lida bem com a independência das agências. Como detém a distribuição de recursos e a indicação para os cargos de suas diretorias, tem poderes suficientes para esvaziar suas atribuições ou impedir que cumpram seu papel a contento. Há várias maneiras de fazer isso, mas duas das principais são a não nomeação de cargos que se tornam vagos e a pauperização orçamentária, destinando apenas parte exígua das verbas que lhes competiam. Ambas foram usadas nos governos petistas e nos que lhes sucederam.
O Legislativo, que dá a palavra final ao submeter a sabatinas os aprovados para a direção das agências, muitas vezes faz parceria política com o Executivo para acomodar interesses político-partidários e de poder de ambos. Tornou-se prática comum, e desvirtuadora, que as agências sejam aparelhadas por partidos em troca de apoio político ao governo, com a indicação de pessoas com filiação política e com capacidades técnicas variadas, ou mesmo escassas. O pêndulo da divergência entre suas funções primordiais de instituições de Estado e de governo, como apêndices do Executivo e suas repartições, marca a história das agências desde o início. Nos governos petistas, elas não têm vida fácil. Há hoje 9 cadeiras vagas nas 12 agências reguladoras e mais 8 que ficarão desocupadas em 2025, quase um terço dos 59 cargos de direção existentes.
O governo pediu que a Corregedoria-Geral da União investigue a omissão da Aneel e possíveis irregularidades em sua atuação, com base em denúncias de Silveira. O apagão da Enel ocorreu em meio às eleições municipais, agregando um imbróglio político a outro técnico, não menos complexo. Silveira abriu carga pesada contra a Aneel, que já multara a empresa, para depois reconhecer, com discrição, que os contratos feitos com a Enel eram “frouxos”, isto é, que a eximiam de responsabilidades por eventos climáticos extremos. Em vez de somar esforços com a Aneel para encontrar uma solução para a reincidência de falhas graves da Enel e evitar que se repitam, o ministro mostrou-se mais interessado em subordinar a agência a seu comando.
O presidente Lula, em reuniões fechadas, queixa-se de que as agências foram capturadas por interesses privados no governo Bolsonaro. No caso em questão, é incongruente, mas atende a suas conveniências políticas. Silveira é do PSD, partido chefiado por Gilberto Kassab, que dá expediente na Secretaria de Governo de Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, possível opositor de Lula nas eleições de 2026. Como senador, Silveira foi nomeado para líder do governo de Jair Bolsonaro no início de 2022, mas rejeitou. Foi padrinho da indicação de Pietro Mendes para a presidência do Conselho da Petrobras, depois de Mendes integrar o Ministério na gestão do almirante Bento de Albuquerque, no governo Bolsonaro.
Silveira também emplacou na Petrobras seu secretário executivo, Bruno Eustáquio, da equipe de transição de Bolsonaro e secretário no Ministério de Infraestrutura do governo anterior.
O governo pretende fazer coincidir os mandatos das diretorias das agências com os do presidente da República, de forma que o Executivo controle todas as nomeações, ou então, o que dá no mesmo, a troca dos conselheiros com a posse do presidente da República – total ou parcial (O Globo, ontem). As agências passariam a ser repartições dos Ministérios, ao sabor da composição política da Esplanada, e não mais órgãos técnicos independentes que, com maior ou menor competência, têm exercido suas funções.
O loteamento dos cargos por critérios não técnicos, a falta de verbas adequadas e a pressão para mudar suas diretrizes enfraqueceram as agências. Elas têm é de ser cobradas a tomar decisões técnicas e embasadas. Retirar sua autonomia será um caminho sem volta e um retrocesso institucional enorme, abrindo espaço para que as empresas privatizadas sejam submetidas ao arbítrio de mutantes interesses políticos, nem sempre republicanos. (Opinião/Valor Econômico)