O trabalho de um matador de aluguel é complexo, perigoso e, portanto, requer o controle absoluto de todos os aspectos de sua tarefa, até o momento exato de apertar o gatilho. “Atenha-se ao plano. Não acredite em ninguém. Antecipe-se, não improvise. Lute apenas a batalha para a qual você foi pago”, repete, como um mantra, em meio a exercícios de ioga, o protagonista de “O assassino” ao longo do filme de David Fincher. O novo trabalho do diretor americano, já em cartaz nos cinemas brasileiros, descreve o cotidiano de um atirador de sangue frio em meio a uma missão fracassada, que se transforma em uma caçada humana internacional.
“O assassino” devolve o autor de “Mank” (2020), cinebiografia do roteirista Herman J. Mankiewicz ganhadora dos Oscars de melhor fotografia e desenho de arte, ao terreno do thriller, gênero que o consagrou com filmes como “Seven” (1995) e “O Clube da Luta” (1999). Mas seu anti-herói não é um matador profissional, de quem nunca ouvimos o verdadeiro nome, apesar dos inúmeros passaportes falsos com os quais viaja pelo mundo. E não é um protótipo de sociopata qualquer: ele mantém uma luxuosa e bem equipada mansão no Caribe, pratica exercícios de relaxamento e ouve músicas da banda The Smiths para atenuar a tensão do trabalho.
“Minha intenção era fazer com que as pessoas entendessem que a era em que vivemos é perfeita para a existência de sociopatas, porque as tecnologias e redes sociais ajudam a promover a dissociação das pessoas. Eu não sabia, antes de começar a filmar, que existia um McDonald’s que é só uma vitrine, você faz o pedido por um aplicativo e pega a comida, interage o mínimo possível com outras pessoas”, explicou Fincher durante o Festival de Veneza, em setembro. “A ideia era construir um assassino vivendo de forma tangível em nosso mundo. A gente percebe, a partir de séries e filmes, que parece haver um estilo específico até na mobília das casas dos serial killers.”
Michael Fassbender encarna esse anti-herói meio zen, um homem sem escrúpulos morais cujo mundo que supõe controlar começa a desmoronar quando acidentalmente mata a pessoa errada em uma missão em Paris. O filme é inspirado numa série de histórias em quadrinhos franceses lançada por Alexis Nolent e Luc Jacamon nos anos 1990. Nas mãos de Fincher e do roteirista Andrew Dean Walker (o mesmo de “Seven”), a história ganha contornos de um violento filme de espionagem, com sequências em Paris, Santo Domingo (República Dominicana), Nova Orleans, Nova York e Chicago. O ator teuto-irlandês está em todas as cenas, deixando seus colegas de elenco, como Tilda Swinton e a brasileira Sophie Charlotte, como meros coadjuvantes de luxo.
“Michael era perfeito para o papel. Eu já o vi interpretando muito bem personagens robóticos, pessoas que são instrumentos sem alma”, recordou o diretor, que esperou uma brecha na carreira paralela de Fassbender como piloto de corrida para tê-lo na equipe. “Ele teve uma participação ativa. Em algum momento, o assassino precisa duplicar um cartão eletrônico. Michael sugeriu que ele procurasse algo na Amazon, mas tínhamos dúvidas se existia algum dispositivo assim para um cidadão comum. Michael pega o telefone, faz uma pesquisa rápida e dez segundos depois descobrimos que não só existem 20 modelos diferentes dessa tecnologia, mas todos custam menos de US$ 20!”
Temendo por sua própria vida, o personagem de Fassbender passa o tempo todo tentando apagar os traços de sua missão que deu errado — e isso significa eliminar todos ligados a ela, inclusive aqueles que o contrataram. O diretor observa que “O assassino” não é um filme sobre um matador de aluguel, mas uma história de vingança.
“É também a história de um homem que mata pessoas que nada têm a ver com o mantra que ele repete mentalmente, durante suas missões. Na trama, o mantra é uma espécie de personagem, que se interrompe, interage de alguma forma com o restante dos personagens. Michael adorou esta ideia e ajudou-nos a dar forma a ela”, contou Fincher. “Mas a última coisa que eu queria era criar algum tipo de empatia do público em relação ao assassino. Mas meu objetivo não era construir um personagem assustador. O objetivo não era aterrorizar. Minha esperança é que o filme apenas deixe o espectador nervoso com a pessoa atrás dele na fila do mercado (risos).”
A história é narrada pela voz do próprio personagem, como um monólogo interno em que o assassino descreve táticas da profissão, recorre a reflexões metafísicas e filosóficas para justificar suas ações e comportamento. Mas o que o espectador “ouve” do que se passa em sua cabeça em determinado momento, em tom quase sempre monocórdio, nem sempre corresponde ao que está sendo mostrado.