Quando viu as imagens que mostram Giovanni Quintella Bezerra estuprando, na sala cirúrgica, uma paciente que acabara de dar à luz seu terceiro filho, passou na cabeça de Barbara Lomba a cesariana que fez, há quase 18 anos, quando não foi sedada. Em meio ao corre-corre da apuração do “pior caso que investigou, em termos de violência e imprevisibilidade”, a delegada, que é filha de um casal de médicos, destaca a importância de uma mulher estar à frente desse inquérito. “Aquela identificação, só nós”, diz, sentada em sua sala, onde não há porta-retratos, e os destaques são uma bandeira do Vasco da Gama, pequenas imagens de Nossa Senhora e Jesus Cristo e prêmios que recebeu ao longo de 21 anos de polícia. Embora acredite que a exposição do flagrante possa causar medo, ela espera que futuras mães criem consciência e tenham disposição para exigir os seus direitos.
1. Como o caso do anestesista chegou para a senhora? No domingo à noite, estava em casa, na folga. O chefe da minha equipe me procurou. Disse que tinham feito um vídeo de uma paciente no Hospital da Mulher, em São João de Meriti, que havia sofrido um abuso. Imaginamos que pudesse ser uma paciente num quarto e que alguém tivesse entrado. E que alguém tivesse visto e filmado. Já na delegacia, tive que olhar o vídeo mais de uma vez para entender. Não conseguia acreditar. É isso que estou vendo? Um médico dentro de um centro cirúrgico, uma paciente sedada, e aquela cena a que assistimos?
2. E qual foi sua reação ao constatar do que se tratava? A minha primeira reação foi um choque total. O comentário era que a gente nunca tinha visto aquilo. Foi, certamente, o pior caso que investigamos, em termos de violência, de imprevisibilidade.
3. Faz diferença uma mulher estar à frente desse inquérito? Tem uma importância muito grande. A gente entende em que papel as mulheres são colocadas socialmente, as violências que sofrem. É claro que os homens podem ter também empatia pelas vítimas, mas aquela identificação, só nós. Na mesma hora em que vi o vídeo, me lembrei da minha cesariana, quando meu filho nasceu, e eu não fui sedada. Foi a primeira coisa que me veio à mente. E, cada vez que vemos o vídeo, procurando detalhes, eu me transporto para aquele lugar. Inicialmente, achei que a sedação pudesse ter sido necessária. Conforme vamos ouvindo relatos, vendo que o médico fez o mesmo em outras cirurgias, nos deparamos com a sedação sendo um meio, um dos elementos da execução do crime.
4. Chegou a se colocar no lugar daquela mulher do vídeo? Eu me identifiquei imediatamente com aquela mulher, me coloquei no lugar dela, pensei em todos os avanços e em tudo o que nós, mulheres, ainda sofremos. É mais uma violência. E essa violência é fora de qualquer imaginação. A vítima ali estava totalmente vulnerável, indefesa, confiando absolutamente naquelas pessoas, inclusive no agressor.
5. Essa mulher pode carregar um trauma para o resto da vida. Isso está sendo levado em conta na investigação? Você lembra do nascimento do seu filho a vida inteira. Imagina uma pessoa lembrar do nascimento do filho e vincular a uma coisa dessas? Até porque houve uma exposição. Para que se apure e prove aquele crime, o que aconteceu com a pessoa acaba exposto. Tem um trauma, e será apurada a violência psicológica, que é crime. Mas, caso não haja condenação por violência psicológica, certamente há um dano moral absurdo.
6. A juíza Raquel Assad transformou a prisão em flagrante do anestesista em preventiva. Acredita que, sendo ela mulher, foi um gesto de sororidade? Claro. Tem que mostrar empatia, mesmo porque é violência de gênero, contra a mulher.
7. A atitude da equipe de enfermagem pode motivar outros profissionais a agir diante da suspeita de um crime? Todo esse contexto me fez constatar que parece que está havendo uma mudança de postura. Temos que ressaltar também a atitude da direção do hospital, porque deu voz à equipe de enfermagem. O que me parece é que houve uma tomada de consciência diferente.
8. No caso filmado, pode ter havido omissão por parte da obstetra da equipe, ao não questionar a sedação e não intervir quando o anestesista determinou que o pai saísse? Os outros médicos nunca tinham participado de uma cirurgia com esse anestesista. Não houve omissão deles no estupro, porque não perceberam. Isso não descarta ações ou omissões que possam configurar violência obstétrica, como uma sedação desnecessária, mesmo que não fosse para estuprar. Quebrado um protocolo que se caracterize como violência obstétrica, que nem sempre é crime, há direitos (cíveis) a serem buscados em outra esfera.