A onipresença das novas tecnologias eletrônicas remodela a forma como vivemos, experimentamos o mundo e interagimos. Estamos fascinados pelo mundo digital. Ao lado do encantamento, porém, coexiste um oceano de preocupações diretamente relacionadas com esse novo estágio das tecnologias, especialmente aquelas relacionadas à Inteligência Artificial e às comunicações via redes sociais. Há, claramente, o delineamento de uma sociedade diferente daquela com a qual, particularmente os nascidos antes dos anos 90, estavam acostumados. Dentre as inúmeras transformações que a sociedade enfrenta hoje, uma das mais inquietantes, embora relativamente silenciosa, é a adaptação do nosso cérebro ao mundo digital, de modo especial o modo como aprendemos e nos relacionamos.
A leitura profunda, por exemplo, na qual o envolvimento entre o texto e o leitor é precedido por um propósito de aprendizado entranhado, duradouro e portanto não superficial, vem sofrendo muito com a fragmentação digital, na qual saltamos de um assunto para outro sem esse mesmo compromisso. O risco, nesse caso, é a passagem de uma cultura baseada no letramento para uma cultura digital que difere quase que por completo de mudanças anteriores nas formas de comunicação humanas. Nesse contexto, emergem perguntas difíceis de serem respondidas e até por isso mesmo bastante inquietantes. Uma delas indaga de que modo as crianças, hoje vivendo num ambiente digital, irão desenvolver o pensamento crítico, a reflexão pessoal, a imaginação e a empatia advindas do processo de leitura profunda? A atual mistura de distrações e o acesso a uma miríade de opções oferecidas pele internet compete diretamente pela atenção de adultos e crianças, com as últimas tendo um impacto que ainda não foi suficientemente dimensionado em seus processos de aprendizagem, fenômeno que começa alarmar pais, educadores e governos.
Conforme a neurocientista Maryanne Wolf, há caminhos para que a leitura profunda não seja simplesmente engolida pela multiplicação de telas em nossas vidas. Tudo começa pelo exame sistemático, em seus aspectos cognitivos, linguísticos, fisiológicos e emocionais, do efeito das várias mídias sobre a aquisição e manutenção do cérebro leitor. Precisamos, deste modo, compreender as contribuições cognitivas profundamente importantes do cérebro experiente atual, à medida que acrescentamos novas percepções em seus circuitos. As conexões entre o que lemos e como aprendemos tem importância crucial para a sociedade. Num ambiente que se defronta com o excesso de informações, existe a tentação de muitos se abrigarem no consumo de informações de fácil digestão, menos densas, intelectualmente pouco exigentes, afetando diretamente, dessa forma, a capacidade crítica e empática dos cidadãos formados sob esse contexto.
Não há, contudo, nenhuma solução binária para os riscos que afetam a leitura profunda. A revolução digital trouxe avanços notáveis em várias áreas e seus aspectos disfuncionais devem ser enfrentados com sabedoria. Os processos de leitura profunda, de acordo com Wolf, levam anos para se formar e precisamos estar atentos para o seu pleno desenvolvimento nos jovens desde muito cedo. Assim, é preciso que os leitores mais experientes se empenhem no esforço consciente em favor da leitura profunda, encorajando filhos e netos a também lerem com atenção e reflexividade. A realidade pode ser perturbadora, quando vemos todos os riscos embutidos na alienação digital, mas pode, na mesma medida, ser reconfortante saber que ainda há tempo para esta tomada de consciência. A natureza dos juízos morais, conforme bem lembra Susan Sontag, depende de nossa capacidade de prestar atenção – uma capacidade que, inevitavelmente, tem seus limites, mas cujos limites podem ser ampliados. Zelar pela formação cuidadosa do senso crítico e da empatia passa pela leitura profunda e não há como delegar essa tarefa para outras gerações sem o risco de que se atrofiem ao longo do caminho.
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