Sábado, 21 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 25 de julho de 2024
Braunau am Inn tem o duvidoso privilégio de aparecer na primeira frase do primeiro capítulo de “Mein Kampf”. Adolf Hitler explica ali que considera uma “feliz predestinação” ter nascido (às 18h30 de 20 de abril de 1889, um sábado nublado, como observa Ian Kershaw em sua biografia de referência) na pequena cidade austríaca. Uma cidade, continua Hitler, “localizada precisamente na fronteira desses dois Estados alemães (Áustria e Alemanha) cuja fusão nos é apresentada como uma tarefa vital que deve ser realizada a todo custo”. O próprio Hitler prossegue especificando quão pouco se lembra da sua vida em Braunau am Inn, o que é lógico porque ainda não tinha três anos quando seu pai, Alois, funcionário da alfândega, foi promovido e a família mudou-se para o outro lado da fronteira, em Passau, na Baviera. Então, em 1898, mudaram-se novamente, desta vez para Leonding, no distrito de Linz. E é Linz que sempre considerou a sua cidade natal e que mais tarde quis, uma vez no poder, transformar na mais bela cidade do Danúbio e no contrapeso cultural de Viena, que tanto detestava. Tudo isso, e o fato de Hitler não parecer ter-se importado muito com Braunau am Inn, não conseguiu salvar a cidade do rótulo de ser “o berço do mal”, onde o líder nazista nasceu.
O fato é que o edifício onde Hitler nasceu, no número 15 da rua Salzburger Vorstadt, permaneceu praticamente inalterado ao longo do tempo, causando – para além do embaraço considerável e do interesse perigoso dos neonazis – um debate acirrado sobre o que fazer com ele, tanto na cidade como em toda a Áustria. O cineasta austríaco Günter Schwaiger tem se dedicado a perseguir essa polêmica, a partir de uma perspectiva pessoal, moral e comprometida muito interessante, no documentário “Quem tem medo do povo de Hitler?”, que chega aos cinemas de Áustria e Alemanha nesta quinta-feira (25).
O filme aborda a espinhosa questão da casa tomando o ponto de vista dos moradores de Braunau, lugar que, como lamenta um deles, já tem o marrom no nome. Desde o início fica claro que boa parte da sociedade austríaca não está nada feliz em ter Hitler como compatriota, prefere Sissi e Mozart. O que se resume na piada de que os austríacos conseguiram convencer o mundo de que Hitler era alemão e Beethoven austríaco. Um testemunho em Viena sugere mesmo mover um pouco a fronteira para que Braunau fique do lado alemão.
O que fazer com a casa, fechada desde 2016, é a questão central que permeia todo o filme, e o destino da propriedade torna-se uma metáfora para a consciência e a memória dos habitantes de Braunau e, por extensão, de todos os austríacos. Schwaiger entrevista vizinhos, historiadores e autoridades, pessoas de ideologias diferentes, com opiniões diferentes. Alguns consideram a casa “um estigma” para a cidade, outros consideram ridícula a polêmica “sobre uma casa onde nada aconteceu, nenhum crime foi cometido e nenhuma ordem foi emitida”. Recorde-se que um vizinho atirou um balde de água em alguns jovens fardados que vieram comemorar o 90º aniversário de Hitler. “Se eles não vierem aqui, irão para outro lugar”, diz outro vizinho.
Entre os momentos mais chocantes, uma câmera escondida filmando o que acontece fora da casa durante um dia inteiro de mais um aniversário de Hitler retrata um neonazista vindo de Berlim colocando uma coroa de flores em homenagem ao “nosso abençoado Adolf”.
“Fiquei surpreendido com a simplicidade e normalidade da casa”, explica o cineasta ao El País. “Imaginei, como todo mundo, um lugar sinistro, esperava algo escuro, úmido, com aura negativa, e o que encontrei foi o contrário, um espaço aberto, com muitas janelas. Nada que pudesse induzir uma sensação sombria ou podre. A simbologia está na cabeça.”
Na verdade, Hitler mal morou na casa. Supõe-se, diz Schwaiger, que ele nasceu num pequeno quarto no segundo andar. Quando a família partiu, a propriedade continuou sendo uma casa alugada, abrigando uma escola e um restaurante, e teve outros usos até que Martin Bormann, o poderoso secretário particular de Hitler, a comprou e deu ao líder. Os nazistas instalaram uma falsa sala de parto do Führer para promover o mito, com móveis inventados, e na casa e arredores o aniversário foi comemorado de forma animada, com uma profusão de suásticas, como captadas em imagens de época do filme.