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Doenças negligenciadas matam 500 mil pessoas por ano no mundo

Novas vítimas da doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti residiam em Novo Hamburgo e Jaboticaba. (Foto: Reprodução)

Quem tem uma doença jamais vai se enxergar como um ponto na estatística, e este é o principal desafio dos processos de tratamento de saúde ao redor do mundo – do desenvolvimento de novos medicamentos aos tratamentos em si, passando por diagnósticos, exames e análises, cada pessoa precisa ser tratada com humanidade. Daí o drama de todos aqueles que são acometidos – e muitos nem sabem disso – por uma das 20 doenças atualmente reconhecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como doenças tropicais negligenciadas.

São patologias conhecidas, muita delas há muito tempo. Mas que, por geralmente afetarem populações em situação de vulnerabilidade, não despertam a atenção da indústria farmacêutica ou dos governos para que os diagnósticos e tratamentos sejam melhorados. Dez das doenças da lista ocorrem no Brasil. São patologias como a doença de Chagas, a dengue, a leishmaniose, a hanseníase e a esquistossomose.

“As principais características que unem essas doenças são a falta de atenção suficiente e a consequente falta de desenvolvimento de ferramentas apropriadas para que os pacientes sejam cuidados adequadamente”, afirma Sergio Sosa-Estani, diretor regional para a América Latina da organização Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDI, da sigla em inglês). “E essas ferramentas não existem ou são insuficientes porque ninguém prioriza o investimento para o seu desenvolvimento, sua produção e sua disponibilidade”, complementa Sosa-Estani.

Dados da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) apontam que essas enfermidades afetam mais de 1,7 bilhão de pessoas em todo o planeta – muitas delas sem terem sido diagnosticadas –, principalmente em países da América Latina, da África e da Ásia. Por ano, cerca de 1,5 milhão de pessoas no mundo contraem ao menos uma dessas doenças, e elas provocam cerca de 500 mil mortes anuais. Visibilidade para o problema Para dar visibilidade ao problema e pressionar por mais investimentos no setor, a OMS instituiu o 30 de janeiro como o Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas – a data foi celebrada pela primeira vez em 2020.

A preocupação é pertinente. Segundo revisão sistemática publicada pelo periódico científico The Lancet, dos 850 primeiros novos produtos terapêuticos aprovados neste século por agências reguladoras ao redor do mundo, apenas 4% tinham como alvo doenças do tipo – embora, como ressalta o levantamento da MSF, essas enfermidades respondam por 11% da carga global de doenças.

Para Vitória Ramos, gerente de advocacia, relações institucionais e assuntos humanitários da MSF, o problema é que, para muitas dessas doenças nem o diagnóstico nem o tratamento evoluíram com o passar do tempo por falta de interesse mercadológico. Dois exemplos de doenças negligenciadas que ocorrem bastante no Brasil, tanto Chagas quando hanseníase são tratadas com medicamentos desenvolvidos nos anos 1960, de acordo com o MSF.

Dados do Ministério da Saúde apontam que o Brasil teve 312 mil casos novos de hanseníase na última década, situando-se como o segundo maior foco da doença no mundo – superado apenas pela Índia. No caso da doença de Chagas, a estimativa é que sejam de 1,9 milhão a 4,6 milhões de brasileiros afetados, muitos deles sem diagnóstico. Segundo o MSF, 6 mil pessoas por ano morrem pelas complicações decorrentes da patologia.

Covid como exemplo

A organização MSF atua na linha de frente para diminuir esse problema. “Já diagnosticamos mais de 100 mil pessoas com Chagas no país, e tratamos mais de 10 mil”, afirma Ramos. “Mas é preciso melhorar e contar com compromisso de governos e investimentos para combater doenças como essa. Muitas podem ser inclusive erradicadas. É preciso gerar políticas públicas que encontrem as pessoas [com as doenças negligenciadas], as diagnostiquem e, então, ofereçam a elas trabalho adequado.”

Ela cita a questão da pandemia de covid-19 como um exemplo de quando vontade política e empenho de indústrias farmacêuticas fazem com que vacinas e remédios sejam desenvolvidos rapidamente. Por outro lado, lembra que o período dificultou ainda mais a vida de quem padece de doenças negligenciadas. “Ficou muito comprometido o sistema no Brasil, com as unidades de saúde sobrecarregadas. Algumas dessa doenças exigem tratamentos crônicos ou requerem idas constantes ao médico”, atenta.

“Pessoas negligenciadas”

Dados do Ministério da Saúde mostram, por exemplo, que os diagnósticos de novos casos de hanseníase no país caíram em 55% de 2019 para 2020, primeiro ano da pandemia. Coordenador nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), o fotógrafo Artur Custódio prefere dizer que o que existem não são doenças negligenciadas, mas sim “pessoas negligenciadas”.

“Quando estamos falando sobre doenças com menos interesse nos investimentos de pesquisa e no desenvolvimento de novos fármacos e novas tecnologias, em geral estamos nos referindo a grupos mais pobres. Há um corte de classe. Essas doenças atingem mais as populações mais vulneráveis”, enfatiza. “O importante é dar visibilidade, conseguir pressionar e mobilizar”, defende.

No último dia 25 de janeiro, um grupo de integrantes do Morhan fez um ato público no Rio para relembrar a importância do diagnóstico do doença. Enquanto isso, a sociedade civil faz um papel que deveria ser de governos. É o caso da DNDI, organização criada em 2003.

“Quando os Médicos Sem Fronteiras ganharam o Prêmio Nobel da Paz [em 1999], eles decidiram fazer um investimento pensando nas populações negligenciadas. Graças a parcerias com um conjunto de outras instituições, no Brasil a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz], foi criada a nossa iniciativa”, conta Sosa-Estani. Ele explica que o modelo é inovador justamente por fomentar parcerias para desenvolver medicamentos. Até agora já foram nove. “E nossa projeção é termos 25 até 2028”, vislumbra.

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