Quinta-feira, 31 de outubro de 2024
Por Redação O Sul | 31 de outubro de 2024
Que as noites mal dormidas podem afetar diretamente nosso bem-estar não é novidade. Mas e se o sono – ou melhor, a falta dele – estivesse envelhecendo nosso cérebro mais rapidamente? É o que sugere uma pesquisa realizada pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Focado em adultos de meia-idade, o estudo mostra que aqueles com dificuldade para dormir ou para permanecer dormindo podem apresentar um envelhecimento cerebral quase três anos mais acelerado, elevando o risco de doenças neurodegenerativas como Alzheimer.
“Essas descobertas são importantes porque mostram que os impactos do sono ruim na nossa saúde cerebral começam muito antes da velhice”, destaca a professora Clémence Cavaillès, pesquisadora principal do estudo. “Isso quer dizer que noites mal dormidas, mesmo na meia-idade, já possuem uma forte atuação no envelhecimento cerebral – algo associado ao declínio da memória e a mudanças no cérebro ligadas ao Alzheimer.”
Para entender essa associação, a pesquisa, divulgada na Neurology, revista médica da Academia Americana de Neurologia, acompanhou 589 participantes na faixa dos 40 anos – uma etapa em que fatores de risco para doenças neurodegenerativas podem começar a afetar o cérebro. No início do estudo e cinco anos depois, os voluntários responderam a perguntas sobre a qualidade do sono, como: “Você tem dificuldade para dormir?”, “Acorda várias vezes durante a noite?”, “Costuma despertar muito cedo?” e “Sente sonolência durante o dia?”.
Com base nas respostas, os participantes foram divididos em três grupos. O primeiro, chamado de “grupo baixo”, incluía aqueles com até uma característica de sono ruim, correspondendo a cerca de 70% dos voluntários. Já o “grupo médio” era composto por aqueles que apresentavam de duas a três características, totalizando 22%, enquanto o “grupo alto” era formado por aqueles com mais de três características de sono ruim, representando 8% do total de voluntários.
Quinze anos depois de responderem às perguntas pela primeira vez, esses participantes realizaram exames cerebrais, permitindo aos pesquisadores avaliar o nível de “atrofia cerebral” – uma perda de tecido cerebral que ocorre naturalmente com o envelhecimento, mas que pode estar associada a problemas cognitivos e doenças neurológicas quando é mais acentuada do que o esperado para a idade.
Os resultados dos exames mostraram que o “grupo médio” tinha uma idade cerebral 1,6 ano mais avançada em comparação com o “grupo baixo”, enquanto o “grupo alto” apresentava uma diferença ainda maior, com uma idade cerebral média 2,6 anos mais avançada.
Entre os problemas de sono mais associados ao envelhecimento cerebral destacaram-se a dificuldade para adormecer, para manter o sono e o despertar precoce, especialmente em pessoas que enfrentaram esses problemas por todos os cinco anos de acompanhamento.
Para Clémence, os resultados são relevantes, pois a maioria das pesquisas sobre sono e saúde cerebral se concentra em adultos mais velhos, ignorando o longo (e muitas vezes silencioso) processo que leva a condições como o Alzheimer. Segundo ela, isso leva a uma visão limitada, em que os distúrbios do sono são tratados como consequência de doenças já estabelecidas, em estágios em que o cérebro já apresenta alterações significativas, mesmo sem sintomas aparentes.
“Ao analisar pessoas de meia-idade, a pesquisa evidencia que a qualidade do sono deve ser monitorada desde cedo, como forma de prevenir o surgimento ou a progressão acelerada de doenças neurodegenerativas, que tendem a se manifestar de forma mais evidente por volta dos 60 anos”, afirma.
Levar o sono a sério
A geriatra Claudia Suemoto, professora na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do estudo, concorda que a participação de pessoas de meia-idade fortalece a relevância dos resultados. “Com adultos na faixa dos 40 anos, temos uma visão mais precisa de como a qualidade do sono pode ser um fator de risco, e não apenas um sintoma”, opina.
Em 2022, Claudia e uma equipe de pesquisadores da USP publicaram um estudo sobre sono no âmbito do ELSA-Brasil, pesquisa longitudinal sobre os adultos brasileiros, em que analisaram tanto pessoas de meia-idade quanto mais velhas. Na ocasião, eles usaram a polissonografia, exame que permite um diagnóstico mais preciso dos distúrbios do sono. “Uma das limitações do estudo americano é que as medidas de sono são autorrelatadas — a própria pessoa informa se dormiu bem ou não, se acordou no meio da noite, se demorou para pegar no sono. Isso compromete a objetividade das respostas, algo que a polissonografia pode corrigir”, observa Claudia.
“Mesmo assim, o estudo é bastante interessante, com um desenho raro: ele mede o sono em dois momentos distintos, no início e cinco anos depois, acompanhando as mesmas pessoas por 15 anos, o que é um período significativo. Esses achados reforçam os resultados da nossa pesquisa e evidenciam o impacto da qualidade do sono na saúde cerebral”, complementa.
A neurologista Dalva Poyares, do Instituto do Sono, também elogia o estudo, destacando o acompanhamento de 15 anos, o uso de ressonância magnética – um exame caro e, por isso, pouco comum em pesquisas – para monitorar o envelhecimento cerebral e o cuidado para que fatores comumente conhecidos por aumentar a probabilidade de demências, como hipertensão e diabetes, não influenciassem os resultados.
No entanto, ela concorda com Claudia que a ausência da polissonografia limita a confirmação dos dados autorrelatados. Além disso, impossibilita observar como problemas de sono específicos, como apneia, se comportam em relação ao envelhecimento cerebral.