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Drummond passaria no Enem?

Drummond fez-se carioca, sem nunca sair de Minas. (Foto: Reprodução)

Passasse por ele, tranquilo, como na vida real, é pura discrição! Não são poucos os que, ao vê-lo, comodamente sentado em banco de praça no Rio (Zona Sul), ficam felizes.

É que ali está Drummond de Andrade, ou simplesmente Carlos, como era mais intimamente identificado na comunidade cultural carioca. O interessante é que o mineiro, de posturas e hábitos conservadores, animou-se a atravessar as Alterosas para chegar e acampar nas letras de um Rio tão atraente. Fez logo saber, sem que alguém duvidasse, que também era “dono do pedaço”.

Drummond fez-se carioca, sem nunca sair de Minas. Quando lhe perguntaram se voltaria a sua terra natal, respondia: “Impossível, nunca saí de lá”.
Drummond, que se deve ter associado no imaginário carioca pelas frases simples e em textos surpreendentes (como o desafiador “O guarda-chuva e a sombrinha” e/ou “Rua torta, lua morta, tua porta”) —”típica ironia criativa carioca” —, pergunto-me: ‘passaria na prova de redação do ENEM?” Para os “enemistas”, a redação é ofício corporativo que não convive com criatividade, nem com inteligência. Será que os áridos e burocráticos professores do ENEM entenderiam o saber, a irreverência, a criatividade do sábio e afetuoso poeta mineiro?

A caixinha do poeta

Elas não eram cariocas da gema: nem por jus soli (que define a naturalidade pelo local do nascimento), nem por jussanguínis (situação em que a nacionalidade é definida pelo parentesco). Programaram uma voltinha pela proximidade do edifício onde moravam (Zona Sul-RJ) como vizinhas de 3° e 6° andar.

A senhora mais idosa — ela preferia que dissessem “menos jovem” — estava vestida de maneira chique e seus cabelos vigorosamente penteados eram totalmente brancos. A outra, de 15 a 20 anos menos, vestida de maneira esportiva, porque viera de uma quadra de tênis, pergunta para a
amiga: “É ele mesmo?”. A resposta vem afirmativa e com convicção: “Sem dúvida”. Sua informação tinha um invólucro da certeza qualificada pelo largo tempo de moradora na frente da pracinha. Caprichando no seu passo, que ela acreditava ser por todos conhecido, deu um bom-dia muito sonoro, misturando tietagem, respeito, admiração e quase intimidade.

Ela tinha razão. Ele estava ali, num formalismo simples sem ser simplório, sentado no seu banco favorito, na pracinha que era quase seu habitat. A escultura não poderia ter ficado melhor.

O Drummond da praça só perdia em autenticidade para o próprio, ao ponto de levar a senhora de cabelos brancos a afirmar: “É &e mesmo”; enquanto a outra, emocionada, diz: “Sem dúvida”. E— para a alegria das duas– completa milagrosamente: “Estava esperando por vocês”.

Drummond era assim: às vezes, o melhor dele estava na crítica que a gente sentia, mas que ele escondera dentro da caixinha que só os poetas sabem abrir. O bom é que, generoso, deixava a caixinha sobre o banco que ele sentara, para que alguém mais curioso abrisse e liberasse a genialidade.

Carlos Alberto Chiarelli foi ministro da Educação e ministro da Integração Internacional

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