Sábado, 21 de dezembro de 2024
Por Lenio Streck | 5 de junho de 2021
Há anos que ando por aqui no O SUL, hebdomadariamente. Escrevendo sobre o cotidiano. São crônicas. Esta é a última.
Nesses anos, fiz como Clarice, perguntando aos meus leitores: é possível entender o que é entender?
Ela dizia: o entender é tão vasto que ultrapassa qualquer… entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completo quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doido. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
Também sempre me inspirei em Manoel de Barros, poeta quem mais desestabiliza o meu entender:
“Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo- água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas. Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior que o mundo. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios…”
Do Pantanal para Totnau, pertinho de Freiburg, busco Heidegger, na Floresta Negra. Ele dizia: A linguagem é a casa do ser; nessa casa mora o homem; os poetas e os pensadores são os vigilantes (os curadores) dessa casa.
Eu não possuo a linguagem. É ela que me tem. Tudo o que sei é garças às palavras que sei. E tudo o que não sei é em face das palavras que ainda não sei.
Em tempos de niilismo e muitas narrativas e poucos fatos, leio Hilde Donim: palavras e coisas jaziam juntas. E depois se separaram.
E eu acrescento: e palavras e coisas estão separadas até hoje. E se tornaram inimigas. Por isso é que o mundo foi transformado em meras narrativas.
Eis a praga do niilismo. E do relativismo. Eis por que existem tantas fake news. Platão foi o primeiro a denunciar esse flagelo das falsidades. Das ilusões. As sombras são sombras, berrava Platão. Mas quem diz que as sombras são sombras é apedrejado.
Até hoje é assim. E vai piorar!
A pandemia ajuda a piorar tudo. Causa sofrimento. Já são quase 500 mil mortos. A melancolia causada pela pandemia é perversa.
É um escândalo. E fingimos que não é um escândalo para que possamos continuar. Dez pessoas mortas é tragédia. 500 mil é estatística. Virou abstração. É possível entender o que é isso tudo?
É possível aceitar que o escândalo não escandalize, que a ofensa não ofenda? Não temos, mesmo, nenhum constrangimento?
É claro: o colunista ofende mais do que a irresponsabilidade de quem deve conduzir o país na maior crise do século. Apedrejem o colunista. Como assim “o rei está nu”? Não vês aquelas belas vestes?
Não. Nem todos aqueles que já morreram, que não veem nada mais.
Até em homenagem às vítimas, o silêncio pode ser retumbante. Não podemos dizer seus nomes todos. Seríamos capazes? Se fizéssemos um minuto de silêncio por cada vítima, ficaríamos anos em silêncio.
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