É falso que 52 municípios brasileiros zeraram o número de mortes por covid-19 ao adotarem o chamado ‘tratamento precoce’ com hidroxicloroquina e ivermectina, como sugerem mensagens nas redes sociais. Um levantamento do projeto Comprova com dados do site SUSanalítico mostra que quase todas as cidades citadas registraram notificações de óbitos no mês de março.
Os benefícios das duas drogas não foram comprovados por pesquisas científicas confiáveis. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras entidades desaconselham o uso dos medicamentos para o tratamento da covid-19, em qualquer estágio da infecção.
Além disso, conforme especialistas, a conexão entre o tratamento precoce e supostas quedas nos números de óbitos nas cidades é insustentável, uma vez que outros fatores influenciam os índices epidemiológicos.
Verificação
A mensagem enganosa que circula no WhatsApp e nas redes sociais menciona 51 cidades de diferentes proporções populacionais. O município de Uberaba (MG) é repetido duas vezes, nas numerações 15 e 31. O conteúdo ainda menciona uma cidade chamada Taquara, no Paraná, mas a região não configura oficialmente um município.
A publicação analisada foi compartilhada no Twitter no dia 5 de abril. Um levantamento da reportagem com dados da plataforma SUSanalítico mostra que, no mês de março, somente os municípios de São Pedro dos Crentes (MA), Rancho Queimado (SC) e São Pedro do Paraná (PR) não registraram notificações de óbitos por covid-19. As três cidades somam pouco menos de 10 mil habitantes.
Na outra ponta, Natal (RN), com população estimada em 884 mil habitantes, lidera o ranking com 385 notificações, seguida por Cascavel (PR) e Chapecó (SC), com 244 e 230, respectivamente. Em Taquara (RS), o total de óbitos acumulados quase dobrou. A cidade gaúcha registrava, em 1º de março, 67 óbitos e fechou o mês com 132 ocorrências acumuladas.
Além disso, até o dia 15 de abril, mais de 20 dos municípios listados apresentavam uma taxa de mortes de covid por 100 mil habitantes superior à média nacional de 178, segundo o SUSanalítico. É o caso de Itajubá (MG). Com cerca de 97 mil habitantes, a cidade mineira contabilizava 304 óbitos, aproximadamente 314 vítimas por 100 mil habitantes.
Conexão insustentável
Além de citar medicamentos sem eficácia comprovada para a covid-19, a associação do uso do “tratamento precoce” com os números epidemiológicos não é correta, de acordo com especialistas.
O médico Márcio Sommer Bittencourt, do Centro de Epidemiologia do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, destaca que outros fatores podem interferir nos números epidemiológicos de uma cidade, desde medidas de restrições adotadas para combater a pandemia até as características da população de cada município.
Bittencourt explica que não é possível aferir o impacto do “tratamento precoce” nas cidades sem um estudo controlado que compare um grupo de pacientes medicados com o protocolo contra um grupo de controle robusto – isto é, pacientes que não recebem os remédios, mas estão sob as mesmas condições do grupo de medicados. Ainda assim, o estudo teria limitações.
“Além das cidades não terem reduzido o número de mortes para nada substancial, elas podem estar em momentos de queda nas curvas por outras intervenções, que é o caso de Chapecó (SC), onde isso é muito claro”, destaca o médico. A cidade catarinense promoveu um lockdown parcial durante o mês de fevereiro.
O método adequado para gerar evidências confiáveis acerca da eficácia de um medicamento corresponde aos estudos clínicos randomizados, defende Airton Stein, professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e médico de família e comunidade do Grupo Hospitalar Conceição.
Ele destaca que esse tipo de trabalho estabelece grupos de controle e critérios de seleção para inibir possíveis fatores que possam confundir a análise dos resultados, o que não ocorre nas experiências clínicas individuais de médicos ou na análise proposta na mensagem enganosa. Stein ressalta que até mesmo as desigualdades nos sistemas de saúde poderiam “ser um fator de confusão”.
“Quando a cidade tem um serviço de saúde que funciona, acesso a tecnologia para atender casos graves e fatores socioeconômicos melhores, os indicadores podem ser mais positivos.” diz o especialista.
Falta de evidências
Até o momento, não há evidências confiáveis que confirmem a eficácia do uso da hidroxicloroquina ou ivermectina no tratamento da covid-19, em qualquer estágio da doença. O painel de evidências da OMS desaconselha a aplicação dos dois tratamentos no combate à infecção do coronavírus.
No caso da ivermectina, a entidade diz que os benefícios e a segurança do tratamento permanecem incertos, ao passo que os dados disponíveis de estudos clínicos com a droga no contexto da covid-19 têm um nível de confiança baixo. A Agência Europeia de Medicamentos também apresenta uma posição semelhante.