Hoje vivemos em um mundo de neocavernas. Como já expliquei aqui nesta Coluna hebdomadária, Platão foi quem primeiro denunciou as fake news, ao dizer que as sombras eram (só) sombras. O sujeito que viu a luz foi apedrejado. Hoje, se você quiser convencer a algum neocavernista de que suas ideias estão equivocadas, ele dirá: quem é você? Eu tenho minha própria ideia sobre o assunto. É o que eu chamo de “a era do anti intelectualismo”, tempos em que os ignorantes têm raiva dos que sabem alguma coisa. Os ignorantes só se sentem bem quando encontram outros ignorantes.
Machado de Assis demonstra bem o modo como o solipsismo (mundo ensimesmado em que quem diz o mundo é viciado em si mesmo) é um problema sério da modernidade. Vejam que Machado escreveu antes das grandes teses desenvolvidas por gente como Heidegger e Wittgenstein.
O conto Ideias de Canário nos ajuda a entender o “sujeito ensimesmado” preso na neocaverna (grupos de whatsapp e redes sociais). Um homem, Sr. Macedo, vê um canário em uma gaiola pendurada em uma loja de quinquilharias. Ao indagar em voz alta quem teria aprisionado a pobre ave, esta lhe responde que está enganado.
Ninguém o prendera. O Sr. Macedo então indagou-lhe se não tinha saudade do espaço azul e infinito, ao que o canário retrucou: “– Que coisa é essa de azul e infinito?” Então, o homem afinou a pergunta: “– Que pensas do mundo, ó canário?” E este respondeu com ar professoral: “O mundo é uma loja de quinquilharias, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; e eu sou o senhor da gaiola que habito e da loja que o cerca. Fora daí tudo é ilusão”. E acrescentou: “Aliás, o homem da loja é, na verdade, o meu criado, servindo-me comida e água todos os dias”. Encantado com a cena, o Sr. Macedo comprou o canário e uma gaiola nova.
Levou-o para a sua casa para estudar o canário, anotando a experiência. Três semanas depois da entrada do canário na casa nova, pediu-lhe que lhe repetisse a definição do mundo. “– O mundo”, respondeu ele, “é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira”.
Dias depois, o canário fugiu. Triste, o homem foi passear na casa de um amigo. Passeando pelo vasto jardim, eis que deu de cara com o canário. “– Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?” O Sr. Macedo pediu, então, que o canário lhe definisse de novo o mundo. “- O mundo”, concluiu solenemente, “é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”. Indignado, o Sr. Macedo retorquiu-lhe: “– Sim, o mundo era tudo, inclusive a gaiola e a loja de quinquilharias!”. Ao que o canário disse: “– Que loja? Que gaiola? Estás louco?”.
Para o canário, o mundo era exclusivamente a sua gaiola e o brechó. O resto era pura ilusão e mentira.
Quantos canários você encontra por dia? Você mesmo já se deu conta de que, por vezes, age como o canário? Saludos!