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Em autobiografia, a atriz Sharon Stone não pesa no texto mesmo quando fala sobre estupro feito pelo avô

Sharon Stone escreve sobre sua vida e reflete sobre a morte num novo livro de memórias. (Foto: Reprodução/Instagram)

Durante uma longa hospitalização em 2001, quando Sharon Stone estava sob tratamento por causa de um derrame e uma hemorragia subaracnóide que havia se espalhado por seu cérebro, cabeça e coluna, ela escreve que recebeu a visita de sua avó Lela, morta havia trinta anos.

“É aqui que as coisas ficam mais esquisitas”, escreve Stone num novo livro de memórias, The Beauty of Living Twice [algo como “A beleza de viver duas vezes”], que a Knopf publicou nesta semana. Lela viera lhe transmitir um aviso: “Faça o que fizer, não mova o pescoço”.

É uma das várias cenas de sua vida que Stone, a estrela de 63 anos de filmes como Instinto Selvagem, Cassino e Rápida e Mortal, relata com franqueza e um certo humor sarcástico. Apesar de sua longa carreira interpretando femme fatales e mulheres misteriosas em Hollywood – e até mesmo em séries de televisão recentes como Mosaic e Ratched – suas memórias são uma narrativa mais episódica de sua vida e formação, especialmente sua juventude na modesta Meadville, Pensilvânia, e sua família indelével, mas problemática.

Como ela explicou numa entrevista por vídeo em fevereiro: “Acredito que o objetivo do meu livro é que ele narra uma vida bastante comum. Não acho que minha vida seja excepcional, fora o fato de que acabei sendo uma estrela de cinema. Este livro poderia ser escrito por muitas outras pessoas que cresceram numa cidade pequena.

É uma história que Stone muitas vezes conta em detalhes inabaláveis, começando com a experiência de quase morte que a inspirou a escrever o livro. “Depois de tudo isso no meu pescoço, consegui voltar a respirar”, disse ela. “Consegui voltar a falar. Respirar e falar de um jeito diferente”.

Ela falou mais sobre a criação de The Beauty of Living Twice, as experiências pessoais que o livro narra e como ele a encorajou a se reavaliar. Aqui vão trechos editados dessa conversa.

1-Por que você decidiu escrever esse livro de memórias?

Eu vinha tentando publicar meus contos e todo mundo me dizia: ninguém quer ler contos. Acho que o que eles queriam dizer de verdade era: nós só queremos explorar sua vida privada. E eu não queria fazer isso na época. Mas aí meu amigo Kael (o autor J. Kael Weston), que escreveu The Mirror Test [O teste do espelho] pediu que seu editor, Tim O’Connell, da Knopf, desse uma olhada.

Nesse meio tempo, escrevi uma carta para a Janklow & Nesbit perguntando o que fazer para conseguir um agente. Então, a Knopf e outra editora começaram a me apresentar algumas propostas. Achei que aprenderia mais com Tim e Sonny Mehta (o reverenciado editor da Knopf que morreu em 2019). Sonny leu minhas coisas e disse que achava que eu seria sua próxima contadora de histórias.

2-Você teve algum processo de escrita específico enquanto trabalhava no livro?

Na época em que eu estava bem focada no livro, fiz dois filmes em Nova York e todos os dias de folga ia para a Knopf, me fechava numa salinha e escrevia. Pegava um pouco de comida ou pedia um pouco de comida e passava cinco, oito, doze, quinze horas só escrevendo.

3-Você ficou preocupada em ser reconhecida na sede da editora?

Estava chovendo e nevando muito naquele inverno. Eu chegava lá de chapéu e casaco, com o computador e mais algumas coisas. Ninguém dava a mínima para mim.

4-Você revela muitas informações intensamente pessoais no livro a respeito de sua família e sua infância, até mesmo detalhes de como você e sua irmã, Kelly, foram abusadas sexualmente por um avô. Você conversou sobre isso com seus parentes antes de publicar o livro?

Minha irmã e eu tomamos essa decisão juntas. Conversamos com minha mãe e, no começo, ela foi muito estóica e me escreveu uma carta dizendo como todas essas informações eram desconcertantes. Toda aquela coisa piedosa, horrorizada, eu-não-quero-falar-sobre-isso.

Então minha irmã ficou muito sobrecarregada quando minha mãe estava ficando na casa dela e foi fundo na história. E minha mãe teve uma revelação. Quando terminei o livro, eu o li para minha mãe ao longo de três dias. E eu estava com gripe na época. Estava de cama e ela se deitou comigo enquanto eu terminava de ler, aí gravei uma hora e meia da nossa conversa. Depois reescrevi muitas partes do livro. E decidi dedicar o livro a ela.

5-Você fica apreensiva com o fato de as pessoas ficarem sabendo dessas coisas sobre você?

Se você não fica apreensiva, as pessoas vão dar um jeito de deixar você apreensiva. Passei praticamente toda a vida adulta com pessoas inventando minha vida por mim. Esperar a chegada desse livro me deu um pouco de frio na barriga. Agora o livro vai sair no período mais ameaçador, perturbador e psicologicamente agressivo que nosso mundo já viveu desde os anos 1960, e vou estar aberta e vulnerável. Sei que vou enfrentar esse problema. Mas eu não quero me armar até os dentes, não quero ficar na defensiva. Quero me preparar para estar aberta e presente. Porque esse é o propósito da minha jornada.

6-O livro tem algumas cenas violentas – uma lesão no pescoço que você sofreu num acidente de cavalgada quando era adolescente, o falecimento de um tio que escorregou e congelou até a morte – mas você encontra maneiras ironicamente engraçadas de escrevê-las. Como é que foi isso?

Tenho uma personalidade meio sarcástica. Realmente acho que precisamos encarar a vida com certa graça, e o humor ajuda muito nisso. Quer dizer, tive uma oportunidade única na minha carreira de interpretar a vilã. Quando eu estava na escola, meu professor de atuação me fez estudar com um cara que ensinava você a explorar seu lado sombrio. E eu fiquei muito surpresa quando dei uma boa olhada em mim mesma – eu fiquei tipo, será que é isso mesmo? Você não é tão ruim assim. Não tenho medo da minha própria sombra. Quando você conhece a profundidade e a amplitude do seu lado sombrio… (o telefone dela começa a tocar o toque Happy, de Pharrell Williams. Ela ignora a ligação e, depois de algumas risadas, retoma a resposta).

As pessoas continuam me procurando para fazer esses papéis porque acham que sou boa nisso e acho que eles acham que gosto de fazer essas coisas. Na verdade, não gosto de fazer esses papéis. E realmente não quero mais fazer – não se não tiver algum propósito. Se vou interpretar um papel sombrio agora, preciso de um motivo além do mero “vai ser divertido”. Acho super engraçada a coisa do macaco-no-ombro (uma excentricidade de sua personagem Lenore Osgood na série Ratched, da Netflix). Eu falei para o Ryan (Murphy, que desenvolveu a série), quando tudo acabar, a gente pode remover o macaco digitalmente e a atuação vai continuar bem interessante.

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