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Entre a fé e a descrença, o caminho do meio

Ainda vivemos num ambiente político conflagrado no Brasil. A mídia e as redes sociais continuam a refletir o forte antagonismo entre liberais e progressistas que marcou os últimos anos da vida nacional e dividiu o País. Entretanto, um gradual afrouxamento das tensões sectárias é necessário e deverá ser construído, não fruto da acomodação natural dos eventos e ânimos, e sim de um debate público abrangente e focado na construção de novas pontes de conversação e encaminhamento de renovadas perspectivas. Pessoas com objetivos divergentes podem e devem conviver, não apenas amparadas por bons sentimentos, o que nem sempre é possível esperar, mas por civilidade e formalismo, construções mais pragmáticas e menos sujeitas aos humores cambiantes que nos afetam. As instituições, nessa perspectiva racional e republicana, possuem o papel insubstituível de nortear, pela via constitucional, a gama cada vez maior e diversificada da complexa teia de interesses que compõe o cotidiano do País.

Há, nesse sentido de possibilidades de equilíbrio e paz na convivência entre os diferentes, sempre uma ideia de como os governos devem agir, de como as coisas precisam ser orientadas. Michael Oakeshott, autor britânico ainda pouco lido no Brasil, reconhece que oscilamos entre acreditar demais nos governos ou sermos excessivamente céticos. Para os primeiros, governos são capazes de projetar, controlar e monitorar todos os aspectos da vida social e política. Já para os céticos, governos não podem, em princípio, produzir perfeição e que devemos evitar concentrações de poder que possam resultar em tiranias que oprimem a dignidade do espírito humano. Oakeshott defende também que existem armadilhas em ambas as visões, quer a otimista, quer a cética. Para ele, há um meio-termo que não pode ser confundido como vacilante, mas que incorpora uma saudável desconfiança sobre a capacidade dos governos, sem resvalar, contudo, para o quietismo total.

Nesses termos, uma abordagem que implique apostar num caminho do meio tem como elemento fundamental o reconhecimento do outro. Shopenhauer ilustra bem o sentido do que pretendo dizer através de uma de suas fábulas: “havia uma colônia de porcos-espinhos. Eles costumavam se amontoar em um dia frio de inverno e, assim, envoltos no calor comunal, escapavam do congelamento. Mas, atormentados com as picadas dos espinhos uns dos outros, acabavam se afastando. E toda a vez que o desejo de calor os unia novamente, a mesma dificuldade os dominava. Assim eles permaneceram, distraídos, entre dois infortúnios, incapazes tanto de se tolerarem como de sobreviver um sem o outro, até que descobriram que, quando guardavam certa distância, podiam não só apreciar a individualidade, mas também a proximidade dos demais. Eles não atribuíram nenhum significado metafísico a essa distância, nem imaginavam que fosse uma fonte independente de felicidade, como encontrar um amigo. Eles a reconheceram como uma relação, não em termos de prazeres substantivos, mas uma consideração contingente a ser determinada para si mesmos. Sem se darem conta, tinham inventado a associação civil.”

A compreensão de que nem tudo virá de ações deliberadas, embora importantes, mas que a contingência, particularmente o elemento tempo e seus caprichosos arranjos, também operam em silêncio, abre uma perspectiva mais abrangente para a construção de uma via menos encharcada pelo sectarismo. Os porcos-espinhos da fábula descobriram ser possível e necessário guardar certa distância uns dos outros para conviver em relativa harmonia, não ignorando suas respectivas realidades, mas adaptando-as às suas efetivas circunstâncias. Nada impede, sob esse ângulo, que possamos almejar uma arena política na qual a civilidade e o formalismo institucional pairem acima dos caprichos idiossincráticos que tanto mal tem feito à nossa sociedade, especialmente quando as palavras se convertem em espinhos, antes de serem elos para maior entendimento.

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