Quarta-feira, 27 de novembro de 2024
Por Carlos Alberto Chiarelli | 3 de novembro de 2023
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Uma autobiografia sem anotações
E tudo teria começado com um menino de só 10 anos. Quase foi parar num seminário, por pressão da mãe, viúva católica fervorosa, e da cultura de uma Itália sulista, que fazia com que se debatessem radicalmente padres conservadores e com poderosos de uma nova geração política de comunistas com uma acidez profunda da realidade cultural. Matteo, por decisão do irmão mais velho, que se fixara no Uruguai há mais de 5 anos, e, há pouco, com a morte do pai, se tornara o chefe da família, decidira levar o irmão, fazendo-o migrante.
Na verdade, escrevo por ele e como ele. Talvez um pouco de autobiografia (esta crônica não é História, é simplesmente história): parte do que se faria e muito do que foi feito; mais ainda do que poderia ter sido.
Homem, num milagroso sentimento de afeição, o vejo com duas pátrias e uma só palavra. Nunca deixou de acreditar na fé que construiu, pedaço a pedaço. Com a crença terrena que renovava a cada dia; e a cada dia se auto ameaçava de renunciar, por que passional e emotiva. Nunca disse como encontrara Deus (sua fé, mas também sua esperança). Para poder recebê-la, teve de fazer o que lhe cabia e não apenas esperar.
Agora, quando chego aos 80 (e um pouco mais), me apercebo do muito que dele existe em mim.
O menino semi-órfão, sem saber, fazia do Atlântico seu leito de viagem ondulado. Nunca poderia descrevê-lo porque não sabia. Ainda pré-adolescente saiu e não imaginava quando e aonde, solitário, chegaria. Suas fugazes lembranças foram seu diário de bordo. Não fora escrito com letras – que não as conhecia deste mundo desconhecido – mas cinzelado na memória que guardava, não se sabe bem onde, num arquivo morto vivo de sua existência.
Amoroso, tocado pelas artes, acossado às vezes pela recordação do que não vivera, seu violino soava, com notas que o levavam a lembrar-se do que certamente eram mais sonhos do que pesadelos.
De sua história, não faziam parte datas e números. Parecendo que, tocado por sua sensibilidade, as guardava, vivendo num recanto íntimo, fazendo-as vermelhas como sangue das suas aurículas mais legítimas. O que não se há de esquecer, especialmente, quando tirava do que era seu stradivarius, os acordes do “Sole mio”, do “Somare lucida” e de outras músicas que decorara na Itália o faziam voltar, momentaneamente, à terra natal.
Carlos Alberto Chiarelli foi ministro da Educação e ministro da Integração Internacional
E-mails para carolchiarelli@hotmail.com
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