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Estratégia arriscada: exploração política dos furacões pode sair pela culatra nas urnas nos Estados Unidos

Temporada de furacões é seguida de tempestade de desinformação por Trump. (Foto: Reprodução)

Não foi exatamente uma “surpresa de outubro”, termo que no dicionário político americano significa fato inesperado capaz de afetar o resultado das eleições na reta final. Furacões tropicais no outono do Hemisfério Norte, como o Helene e o Milton, ilustram a folhinha dos eleitores do sul dos Estados Unidos desde sempre.

Mas o rastro de destruição do primeiro, na Carolina do Norte e na Geórgia, estados decisivos para a vitória no Colégio Eleitoral, e a velocidade recorde da formação do segundo, apelidado de “a tempestade do século”, se revelaram desastrosos para as campanhas de Kamala Harris e Donald Trump à Casa Branca.

Em disputa acirrada, com empate nas pesquisas, as duas foram acusadas de politizarem a resposta a fenômenos intensificados pelo aquecimento global, responsáveis por centenas de mortes, com milhares de cidadãos em risco e comunidades inteiras à mercê de ajuda pública para se reerguerem. Deram tiros que, especialmente no caso do republicano, têm tudo para sair pela culatra em novembro.

Foi Trump quem jogou a temporada de furacões para o olho da disputa com Kamala. Desde quando o Helene avançou pelo solo americano, passou a repetir mentiras e teorias da conspiração, a mais absurda delas a de que não havia dinheiro federal suficiente para ajudar os desabrigados pois o governo de Joe Biden havia transferido os fundos para conter a entrada recorde de imigrantes no país. Sua nora Lara, copresidente do Partido Republicano e natural da Carolina do Norte, bateu ponto nos tradicionais programas noticiosos no último domingo, às vésperas da chegada do Milton, fisionomia séria, para repetir que “enquanto nós, sulistas, morremos, o ‘dinheiro de Biden e Kamala’ paga diárias em hotéis de luxo para os ilegais”. Mentira, claro.

A patacoada trumpista, alertaram até mesmo governadores e líderes republicanos das áreas mais atingidas, complicou o já difícil trabalho da Fema. A agência federal americana para o gerenciamento de emergências e desastres teve de entrar pesado no combate à desinformação no momento em que buscava convencer cidadãos a saírem de áreas de risco e organizar os esforços de resgate. Teve de reafirmar que havia fundos públicos para a retirada segura e a ajuda na recuperação de bens e propriedades destruídos.

Enquanto Trump acusava a Casa Branca não só de incompetência, mas de descaso, “pois as áreas mais afetadas são de eleitores republicanos”, o governador da Geórgia, Brian Kemp, um republicano, e prefeitos da oposição em cidades duramente atingidas na Carolina do Norte desmentiram, um a um, o candidato à presidência de seu próprio partido. Garantiram que não só estavam em contato direto com Biden e com o governador democrata Roy Cooper, mas que ambos haviam se mostrado especialmente solícitos, não economizaram ajuda humana e financeira, e que era especialmente importante seguir a orientação do poder público neste momento. Além de rasteira, a tática eleitoral trumpista se revelou criminosa.

Equilíbrio de Kamala

Kamala, por sua vez, se encontra em situação delicada. Em disputa voto a voto com Trump, a vice de Biden não é a face da resposta federal à devastação causada pelos furacões. Mas também não podia seguir a campanha em outros estados como se nada tivesse acontecido. A saída da Casa Branca foi mandar Biden e Kamala para eventos distintos na Geórgia e na Carolina do Norte. A vice se encontrou com voluntários e políticos diretamente envolvidos no comando dos esforços de resgate.

Podia ter bastado, mas a campanha democrata resolveu devolver na mesma moeda os golpes abaixo da cintura de Trump. Peças de propaganda nos sete estados decisivos mostram o ex-presidente debochando, em comícios e aparições públicas nas últimas semanas, da crise do clima e do aquecimento global. Em uma delas o vilão é Ken Cuccinelli, figura central da pasta de Interior no governo Trump, contribuinte destacado do demonizado Projeto 2025, ultraconservador. Ele defende justamente o encolhimento radical da Fema. Em seguida, avisa-se: “O plano de Trump é simples — diminuir o auxílio às vítimas de furacões, que se tornarão mais letais”. Outra propaganda democrata na tevê faz as contas e mostra que Trump privilegiou, quando em Washington, a ajuda federal no combate a tragédias a endereços comandados por aliados.

Pessoas próximas ao comando da campanha democrata afirmam reservadamente considerar que Kamala “caiu em uma armadilha” e passou a imagem de “pouco presidencial”. Afinal, se a “tempestade do século” causou, como parece, ainda bem, muito menos mortes na Flórida do que o Helene, argumentam, o foco segue nas dezenas de cidadãos ainda isolados e desaparecidos na Carolina da Norte, onde o número de mortos ultrapassou 230.

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