A designer gráfica Flavia Pedras Soares foi casada com Jô Soares durante 15 anos. O apresentador, humorista, ator e escritor, que morreu no último dia 5 de agosto, citava “Flavinha” constantemente em seu programa de entrevistas na TV. Os dois estabeleceram uma relação de tanta cumplicidade que nem o fim do relacionamento, em 1998, foi capaz de abalar. Em uma entrevista, em 2018, Jô chegou a dizer que a separação “não deu certo”, já que eles estavam sempre juntos mesmo após o término.
Se a dupla seguiu a vida adiante foi sempre amparada pelo elo da bela amizade que construíram. Tanto que Flavia era quem estava ao lado do amigo em seus últimos momentos. Coube a ela dar a notícia de sua morte pelas redes sociais.
Três meses após a partida de Jô, Bitika, como Jô a chamava, falou sobre Bolota, apelido carinhoso que ela lhe deu.
É bonito pensar na amizade de vocês, que permaneceu tão forte após a separação. Até o fim estiveram juntos, né? Como foram os últimos momentos dele?
Os últimos momentos dele foram um deslumbramento. O estado de afiada consciência e a inesperada completa perda do medo de morrer foram de uma beleza sem fim.
Como descreveria o processo de luto que está vivendo?
Difícil e diferente de todos os lutos que já vivi. Sou órfã, sei desse sofrimento. É doido. Tem momentos em que você acha que está tudo bem, que sua vida está seguindo. Daí, vem uma dor que te dá um tapa na cara e te joga na cama. É físico, sabe? Mas tenho a sorte de ter um amor, a Zélia (Duncan, cantora) que é uma companheira inacreditável (as duas estão juntas há seis anos e se casaram em 2021), dois irmãos que botam as coisas para andar, além de amigos maravilhosos, que me amam e que, junto com terapeuta e psiquiatra, formam uma rede muito elástica. Quando eu bato embaixo, me jogam de volta para cima com o maior carinho. Mas eu sou mesmo é um escorpião cascudo que só me refaço no fundo da toca escura. E com tempo, muito tempo.
Depois que o Jô se foi, só vi pessoas compartilhando boas lembranças dele. É impressão minha, ou ele só cultivou o bem?
Que lindo você falar isso! Estou chapada com a quantidade de gente que tem aparecido para me contar alguma coisa boa, alguma ajuda, de todos os tipos, e que nem para mim ele tinha contado. O Jô, definitivamente, escolheu o bem. Porque é isso, né, as escolhas são diárias, e ver, desde que ele se foi, as escolhas comoventes que fez sem estardalhaço só confirmam que o sujeito era muito incrível. Vivo chorando por aí, de alegria por ter convivido tão de perto com ele, de raiva porque sinto saudade e também de agradecimento, por termos tido nossos caminhos cruzados tão definitivamente.
E as reverências não param… O que ele tinha de tão especial que provoca nas pessoas essa vontade de homenageá-lo?
O riso. A graça. E a vontade que dá de ver o Brasil melhor pelo qual ele lutava. O humor é resistência, e ele foi isso nos seus quase 60 anos de trabalho. Ele amava o palco, a casa dele era o teatro, mais que tudo. E ele amava o Brasil. Dizia que não seria ninguém fora daqui. Eu até nem concordo muito, mas não conta pra ele, tá?
Por que a família preferiu não revelar a causa da morte?
Por nenhuma razão específica. Ou para ensinar as pessoas a serem menos futriqueiras. As pessoas ficam velhas e morrem de causas naturais. Ele gostava da vida privada. Tendo sua morte sido natural e não trágica, felizmente, sendo ele um sujeito elegante na vida, desejamos que a morte dele fosse um pouco mais calma e reservada. Ele se mostrou tanto na vida, estava de bom tamanho. Quis caixão fechado e cremação, tudo rápido, e teve todo meu apoio.
Qual é, na sua opinião, o principal legado deixado pelo Jô ao país?
O amor e humor. A crítica mordaz, inteligente e engraçada para que nos entendêssemos melhor e, assim, pudéssemos encontrar a vocação de sermos a gente incrível que ele achava que a gente era. Ainda falta muito, mas poucos fizeram tanto e tão dedicadamente por essa causa.
Como ele estava vendo a ascensão da extrema-direita no Brasil, o saudosismo da ditadura, o risco à democracia e de nos tornarmos um país autoritário? E, por fim, o que teria achado do resultado das eleições?
Ele estava desesperado. Desiludido. Gostaria que ele tivesse podido ver a luzinha que agora se acende no fim do túnel. Teria ficado muito esperançoso. Queria que tivesse tido essa chance.