O inesperado anúncio de que o rei Charles III suspenderá a agenda pública para fazer um tratamento contra um câncer causou desconforto e certa ansiedade entre os britânicos por várias razões. É incomum a Casa Real voluntariar prontuários médicos de seus integrantes, sobretudo quando se trata da saúde do soberano. Conta-se nos dedos de uma mão o número de vezes que a rainha Elizabeth II – já nonagenária – pusera os pés em um hospital. “Jamais queixar-se, jamais explicar-se” – a frase atribuída ao ex-primeiro-ministro Benjamin Disraeli (1804-1881) foi o mantra da realeza por séculos.
Expor a fragilidade da condição humana dos monarcas tem o duplo efeito de diminuir o mistério que os torna tão especiais e enfraquecer a instituição. Não há vácuo de poder.
Após os 70 anos do mais longo reinado da história do Reino Unido e 96 de vida de Elizabeth II, sua soberana mais longeva, os britânicos habituaram-se a ver nos Windsors uma espécie de estabilidade atemporal, capaz de resistir a crises, guerras e pandemias. Recentemente, contudo, as coisas mudaram.
Em menos de cinco anos, o Reino Unido viu-se às voltas com quatro primeiros-ministros e perdeu sua referência maior, a rainha, enquanto tenta recuperar a importância geopolítica após o Brexit (a saída da União Europeia) e, a duras penas, retomar o crescimento econômico. Além disso, um traço nacional é o de esquivar-se de temas desagradáveis sempre que possível. Entre eles, doenças. A transparência com que o Palácio de Buckingham tratou o tema dá margem a especulações sobre os novos rumos da monarquia sob Charles III, que tem 18 meses incompletos no trono, e sobre a própria seriedade da enfermidade. Causa insegurança.
Charles III já havia sinalizado que os tempos são outros. Prova disso foi avisar que se submetia a procedimento cirúrgico para tratar de um problema de próstata que teria se revelado benigno. O anúncio, porém, aconteceu na mesma semana em que se revelou, sem detalhes, que a princesa de Gales seria submetida a uma cirurgia abdominal. O que se sabe é que, após duas semanas de internação, Kate ficará recolhida no castelo de Windsor, onde vive com o príncipe-herdeiro William e os três filhos, até a Páscoa.
Ao jornal O Globo, a especialista Pauline MacLaran afirma que o público se mantém solidário ao rei. Mas o fato de a princesa manter-se afastada dos afazeres reais por tanto tempo também é motivo de insegurança. Kate é parte do chamado núcleo familiar reduzido. Uma das primeiras medidas de Charles III foi enxugar a lista dos chamados “working royals”, os membros da família a serviço.
“Isso mostra fragilidade em um momento em que membros do núcleo precisam afastar-se por um tempo. A transparência do Palácio é atípica para evitar especulações desnecessárias sobre a saúde do rei e talvez até para desviar a atenção da saúde da nora”, disse MacLaran, professora do Royal Holloway da Universidade de Londres, e coautora do livro “Royal fever: the British monarchy in consumer culture” (“Febre real: a monarquia britânica na cultura do consumo”, em tradução livre).
Para ela, William, que deve cobrir parte da programação do pai (no ano passado foram 425 compromissos públicos, pelas contas do periódico Telegraph), estará mais do que nunca sob os holofotes.
“As pessoas devem vê-lo como a estrela-guia do futuro da monarquia”, disse.
Segundo o comunicado do Palácio, o monarca teria aberto o jogo sobre seu novo diagnóstico (ainda que sem revelar exatamente qual tipo de câncer e sua localização) também para aumentar a compreensão do público sobre uma doença que afeta a tantos mundo afora. No dia seguinte do anúncio real, o primeiro-ministro Rishi Sunak ressaltou a importância do diagnóstico precoce do soberano.
Este, por sinal, é tema delicado para o partido conservador do premier (no poder há quase 14 anos) e outro motivo de desconforto nacional. O Reino Unido vem registrando sucessivos recordes na fila de pacientes à espera de tratamento médico nos hospitais públicos (6,39 milhões até novembro de 2023). E os percentuais de pacientes já diagnosticados com câncer a receber seu primeiro tratamento em até um mês, após a decisão de iniciá-lo, ou em até dois meses, depois de encaminhamento médico urgente, seguem bem abaixo da média histórica.
O relatório “Combate às desigualdades na saúde nas listas de espera do sistema público”, do Fundo do Rei, revelou que, em agosto de 2022, ingleses em áreas desfavorecidas tinham duas vezes mais risco de ter de esperar por mais de um ano por tratamentos eletivos do que em áreas abastadas. As informações são do jornal O Globo.