Segunda-feira, 20 de janeiro de 2025
Por Redação O Sul | 13 de março de 2021
Dona Nanci mora em uma das casas que fica em terreno do Hospital Dr. Arnaldo Pezzuti, em Mogi das Cruzes.
Foto: Arquivo pessoalEm 24 de dezembro do ano passado, a aposentada Nanci, de 69 anos, recebeu uma carta em sua casa, em um bairro afastado de Jundiapeba, distrito próximo a Mogi das Cruzes (SP).
“Passei mal quando li, acabou com o meu Natal. Era uma notificação de despejo dizendo que eu tenho seis meses para desocupar o imóvel e entregar as chaves”, conta.
Também em dezembro, duas vizinhas de dona Nanci receberam o aviso. E outras sete famílias já haviam sido notificadas entre abril e maio, durante o pior período da pandemia em 2020.
As casas ficam no terreno que faz parte do Hospital Doutor Arnaldo Pezzuti Cavalcanti, onde até 1986 funcionou o Sanatório Santo Ângelo. Inaugurado em 1928, o edifício foi o primeiro leprosário do Brasil – uma colônia afastada das cidades onde pacientes de hanseníase eram internados à força por tempo indeterminado.
As famílias que ainda moram no bairro são ex-funcionários e ex-pacientes do leprosário Santo Ângelo. São pessoas que foram isoladas e marginalizadas pela extinta Política de Profilaxia da Lepra do governo brasileiro.
Advogada das famílias, Raquel Rondon explica que, em tese, o dono das terras é o governo do Estado de São Paulo, autor de todas as notificações de despejo. Ela diz “em tese” porque a posse das terras está em disputa judicial há anos.
Segundo a Procuradoria Geral do Estado, o governo estadual e uma mineradora que explora a região disputam na Justiça a posse do terreno desde 2013. (leia mais abaixo sobre a disputa fundiária).
“Além de querer despejar as famílias no meio da pandemia, o governo estadual não oferece nenhuma outra possibilidade de moradia, nenhuma alternativa que não o despejo. Ele nega até mesmo incluí-las em um programa de moradia”, diz Rondon.
O governo de São Paulo afirmou que dona Nanci e suas vizinhas são ex-funcionárias do hospital e que, desde que se aposentaram, não têm mais o direito de morar nas terras.
As demais famílias, segundo o órgão, são parentes de pacientes egressos do leprosário, mas que já morreram.
“Tradicionalmente, o local dedicou 55 moradias destinadas exclusivamente a pacientes hansenianos e funcionários ativos da unidade, com todos os custos de água e luz, por exemplo, sob responsabilidade do hospital. Não há regularidade na permanência de moradores que não se enquadram neste perfil e, por isso, foram emitidas sete notificações”, diz o governo de São Paulo.
Rondon explica, porém, que essas famílias não são invasoras e algumas pessoas notificadas chegaram a nascer no local.
“Não são pessoas que chegaram no terreno por conta própria. Elas foram colocadas ali pelo Estado, e as terras serviram de cárcere. Depois, muitos dos seus familiares que hoje vivem na casa são filhos que nasceram dentro do local. Não são meros invasores, como diz o governo”, diz a advogada.
Quanto às cartas terem sido enviadas em meio ao pio momento da pandemia de coronavírus, o governo afirma que o processo judicial para retirada de moradores do local está em curso desde 2014, mas “culminou num desfecho neste momento pelo próprio trâmite jurídico e não por decisão tomada neste momento (de pandemia)”.
E, apesar da disputa pela posse das terras estar em andamento, o governo estadual afirma pode despejar as famílias porque administra a área desde 1956. Mas, uma vez desocupadas pelas famílias, as casas não poderão ser usadas até a Justiça determinar quem é o dono da área.
A advogada Raquel Rondon relata que, em janeiro, as famílias ganharam uma liminar na justiça que pedia a suspensão das ordens de despejo até o final da ação por causa da pandemia. Contudo, mesmo alegando que não tem urgência em retomar as casas, o governo de São Paulo pediu que a decisão fosse revertida e conseguiu derrubar a liminar.
Os moradores também afirmam que, mesmo sob responsabilidade do hospital, as casas desocupadas estão em péssimo estado, com paredes trincadas, infiltração, janelas e portas quebradas.
“Quando sai o morador, e a casa desocupa, o estado esquece dela, fica abandonada”, diz Marilisa, de 32 anos, que vive no local. A mãe dela é uma das que receberam a notificação. Outros moradores reclamam de mato crescido, sujeira no terreno, criminalidade e insegurança.
A advogada conta: “Existem muitas casas desalojadas, parecem casas mal-assombradas. Um corpo chegou a ser desovado dentro do complexo no ano passado. Isso prova que o estado não está cuidando do local e não tem urgência para requerer essas terras.”