A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou no seu sapato a pedra que incomodava o ministro Alexandre de Moraes durante a investigação da tentativa de golpe de Estado: a tarefa de julgar o papel do ex-assessor da Presidência Filipe Martins no caso.
Executadas por militares e civis, as ações que teriam o objetivo de manter no poder Jair Bolsonaro são o pano de fundo de uma disputa entre a defesa de Martins e o ministro Moraes desde que o acusado teve a prisão decretada em razão de uma viagem que não fez, o que o manteve no cárcere por seis meses, dez dias dos quais na solitária.
Martins é um dos 34 denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) sob a acusação de ter participado da tentativa de golpe de Estado e de abolição do estado democrático de direito. A ele imputa-se a confecção de uma das minutas do golpe, aquela que previa prender Moraes e o também ministro do STF Gilmar Mendes, além do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), então presidente do Senado.
Com o levantamento do sigilo da delação e das peças da investigação da PF, a defesa de Martins descobriu que, desde 24 de outubro de 2023, o ministro Moraes havia deferido o afastamento do sigilo dos dados de geolocalização do telefone celular de Martins no período entre junho de 2022 e outubro de 2023. O mesmo foi pedido em relação aos outros dois membros do chamado “núcleo jurídico” do golpe: o padre José Eduardo de Oliveira e Silva e o advogado Amauri Feres Saad.
A PF também executou um exame papiloscópico na primeira minuta do golpe, aquela encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, um dos denunciados pelo MPF. O laudo não detectou as digitais de Martins no documento. Terminada a investigação, tanto o padre quanto o advogado, apesar de indiciados no inquérito, ficaram de fora da denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. Eis um primeiro ponto explorado pela defesa de Martins.
Ela também joga luz no conteúdo dos diversos depoimentos do delator Mauro Cid. A defesa ressalta que o delator afirmou aos federais que não tinha nada que pudesse corroborar sua acusação em relação ao seu cliente. A PF perguntou: “Existe algum elemento material que o senhor possa apresentar para corroborar o que o senhor está indicando, especificamente sobre o Filipe Martins?” A resposta foi: “Não. Tudo foi feito no computador dele”.
Os advogados vão questionar o uso, pela acusação, do depoimento do general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército. De fato, a denúncia de Gonet é categórica ao dizer que general afirmou que Martins participou da reunião do dia 7 de dezembro de 2022, na biblioteca do Palácio do Alvorada, e teria lido ali a minuta do golpe aos comandantes do Exército e da Marinha. Mas o que ficou consignado no depoimento do general foi a expressão de que “possivelmente” Martins participara daquele encontro e lera o documento. Por isso, a defesa vai pedir o vídeo do depoimento do general para saber em que circunstância Freire Gomes usou o termo “possivelmente”.
Para a defesa, o MPF usou um depoimento “completamente duvidoso do Freire Gomes” e o transformou em uma “afirmação categórica, como se fosse um fato indiscutível”. A reforçar essa versão está o fato de que o então comandante da Força Aérea, brigadeiro Carlos Almeida Baptista Júnior, não mencionou Martins em seu depoimento, bem como afirmou nunca ter se encontrado com o ex-assessor.
Os advogados também analisam a cronologia dos fatos apresentados por Cid, o delator. Em seu celular havia uma fotografia de uma das minutas do golpe. A imagem foi feita no dia 28 de novembro, quando Cid estava no Rio e enviada por ele para outro celular de sua propriedade. Martins nega a autoria desse texto. O documento cita são Tomás de Aquino e o trata como um iluminista, um erro que Martins, formado em filosofia, não cometeria.
Naqueles dias, Cid estava no Rio. O tenente-coronel voltou dali no dia 4 de dezembro e, só no dia 6 de dezembro – Cid afirma –, Martins apareceu com a minuta do golpe para entregá-la a Bolsonaro. Por fim, a defesa usa a obra Lawfare, uma introdução, que tem como um dos autores o ministro Cristiano Zanin, para defender que o ex-assessor vive uma situação semelhante à de réus da Operação Lava Jato, quando Zanin defendeu Luiz Inácio Lula da Silva, e alega que os mesmos requisitos que justificaram a suspeição do então juiz Sergio Moro estariam agora presentes no caso de Moraes.
Este é o abacaxi que a 1ª Turma do STF terá de descascar: o ex-assessor que fora mantido na cadeia acusado de fazer uma viagem que, depois, provou não ter feito, agora, foi denunciado em razão de uma minuta que, segundo a defesa, “não existe e que o próprio delator afirma não poder apresentar provas que comprovem sua existência”. (Opinião/Marcelo Godoy/Estadão Conteúdo)