O pé de moleque e a maria-mole que animam as festas juninas e o Cosme e Damião não conquistaram o Taste Atlas. Nem o caráter histórico do cuscuz paulista, criado no século XIX. Os cortes do acém, da paleta e do lagarto não foram deglutidos nas 7.456 avaliações feitas no site até setembro que geraram a relação de 37 piores comidas do Brasil. Mas a lista que não poupou o sagu, o sequilho e o bolo-formigueiro não tem gosto, segundo chefs especializados em explorar a tradição da culinária brasileira. Para eles, gosto é cultura. E faltou esse ingrediente ao Taste Atlas.
O cuscuz paulista amargou o primeiro lugar do índice, com uma nota de 2,8 estrelas — em uma escala de zero a 5. De acordo com a chef Roberta Sudbrack, a avaliação foi mais uma prova de como a relação representa um desconhecimento das riquezas culturais do País.
“Não cheguei nem ao final da lista. Achei uma vergonha e de uma falta de cultura absurda. É algo risível. E olha que não estou fazendo uma avaliação de como isso me atinge. Mas para entender o cuscuz paulista, por exemplo, você tem que ter vindo aqui, conhecido as tradições minimamente, se interessado pelos tantos brasis dentro de um Brasil”, enfatizou.
Roberta diz que a lista não reflete a forma com que os brasileiros se relacionam com a comida, ou como isso está ligado à nossa maneira de se expressar. “Nas palestras ao redor do mundo, falo que o Brasil é muito diferente de todas as outras culturas. É uma riqueza muito grande de ingredientes, de modos de fazer, de modos de pensar, de modos de interagir e de viver essa cozinha”, explica.
Pesquisador da culinária tupiniquim e responsável por difundir a culinária paraense Brasil afora, o chef Thiago Castanho defende a importância de pratos como a maniçoba, iguaria de sua terra natal preparada com folha da mandioca brava, pedaços de carne suína e bovina e muito, mas muito cuidado e tempo (para retirar o ácido cianídrico da mandioca). Com toda a sua elaboração e combinações, a “feijoada do norte” ficou em 16ª posição do ranking, com avaliação 3,6.
“Esse tipo de lista dá engajamento, principalmente quando se fala mal. Gera discussão, e até uma polarização no próprio Brasil, sendo que quem fez a lista foi alguém de fora. Não tem relevância alguma e não acrescenta em nada. Isso não faz as pessoas se interessarem pelos pratos, pelo contrário, afasta. A maniçoba, por exemplo, tem uma cultura enorme por trás. Reúne traços indígenas, africanos e europeus”, diz.
O sanduíche de mortadela, marca do Mercado Municipal de São Paulo, figura na 18ª colocação, com 3,7 estrelas. Para o comerciante William Loureiro, de 37 anos, quarta geração da família que introduziu o famoso lanche no reduto da capital paulista, é um motivo para não levar a sério o rol do Taste Atlas.
“Quem vem aqui não se arrepende. Todos têm o direito de não gostar do prato, mas recebemos gente do mundo todo, inclusive chefs renomados, e nunca ninguém reclamou. Respeitamos o TasteAtlas, mas isso não faz sentido”, afirma o gerente do octogenário Bar do Mané, que em dias movimentados chega a vender mais de 1,1 mil pães com mortadela.
Patriotismo ignorado
Na página em que divulgou a relação, o portal reconhece que não é o dono da verdade ou do gosto. O site ressalva, depois de desqualificar o coxão mole (10º lugar no ranking, com nota 3,5), a salada de maionese, o cajuzinho e o salpicão de frango (todos com notas 3,7, ocupando os 19º, 20º e 21º lugares), reconhece que os seus rankings “não devem ser vistos como a conclusão global sobre alimentos”.
As preferências saíram de uma base de dados “composta por uma série de mecanismos que reconhecem usuários reais e que ignoram avaliações de robôs, nacionalistas ou patrióticas locais, e dão valor adicional às avaliações de usuários que o sistema reconhece como conhecedores”, segundo o Taste. A rejeição ao nacionalismo pode explicar como o X-Tudo tenha ficado atrás da galinhada e do pato com tucupi, mesmo todos tendo tirado nota 3,9.
Veja os cinco piores, segundo o Taste Atlas: cuscuz paulista, arroz com pequi, acém, paleta e maria-mole. As informações são do jornal O Globo.