Quinta-feira, 26 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 23 de setembro de 2023
Há 50 anos um mistério paira sobre o Chile e o mundo da literatura, pois há indícios de que o Nobel de 1971 teria sido vítima da ditadura Pinochet. Após investigações científicas, é hora de a Justiça se pronunciar. Em setembro de 1973, Neftalí Reyes, conhecido por todo o mundo como Pablo Neruda, foi hospitalizado nas Clínicas Santa María, de Santiago do Chile. Justamente naquele momento, iniciava-se no país sul-americano uma ditadura que duraria 17 anos.
Em meio a esse obscuro momento da história chilena, morreu em 23 de setembro o célebre poeta, em circunstâncias suspeitas. O boletim médico dizia que a causa fora um câncer de próstata de que padecia desde 1969. Porém, curiosamente, o óbito ocorreu exatamente um dia antes de Neruda partir para o exílio no México. Além disso, o boletim em questão só foi expedido em 1977, portanto quatro anos depois do óbito.
Suspeitas sobre a causa da morte sempre estiveram presentes, já que o Nobel de Literatura de 1971 era uma presença incômoda para o regime do ditador Augusto Pinochet. No entanto o caso permaneceu nebuloso, até que, em 2011, o Partido Comunista do Chile apresentou uma denúncia para que se iniciasse uma investigação.
Segundo o chofer de Pablo Neruda, este fora assassinado: em seu leito de morte, ele teria contado que recebera uma facada no estômago. Em 2013 o corpo foi exumado para exame dos ossos. Na ocasião, não se encontraram agentes químicos relevantes. Entretanto, quatro anos mais tarde, uma segunda análise, realizada por 16 peritos de diversos países e disciplinas, detectou a presença da bactéria Clostridium botulinum.
Apesar de ser encontrado em todo ambiente que possa contaminar alimentos – sejam solos, sedimentos, poeira ou água – esse microrganismo produtor de esporos é considerado arma biológica se aplicado a seres humanos.
Mistério de cinco décadas
O sobrinho do poeta Rodolfo Reyes, advogado querelante no inquérito para esclarecer a causa da morte, conta: “Em 2017 encontrou-se uma grande quantidade de Clostridium botulinum nos ossos, especialmente num molar que permanecia intato. Também se confirmou que Neruda tinha câncer, mas não foi isso que lhe tirou a vida.” Com base nesse achado, ordenou-se uma nova autópsia para determinar se a presença da bactéria se devia a contaminação exógena ou endógena.
“O boletim entregue em 28 de janeiro deste ano [2023] pelos laborátorios das universidades McMaster, do Canadá, e Copenhague, da Dinamarca, concluiu que a bactéria não se infiltrou no cadáver a partir do exterior [por exemplo, proveniente do material do caixão], mas que ele já a tinha antes de morrer, ela estava no seu corpo. Isso resulta categórico para nós e confirma que Neruda foi assassinado”, afirma Reyes.
Para a ciência, contudo, a questão não é tão clara assim. O especialista John Austin, diretor do Botulism Reference Service for Canada, ressalva que a mera presença da C. botulinum não é danosa aos seres humanos, mas sim as toxinas que produz ao crescer.
Quando alguém morre, as bactérias se reproduzem no corpo para iniciar o processo de decomposição. Portanto é possível que houvesse uns poucos inofensivos esporos de C. botulinum na boca de Neruda, os quais se multiplicaram após a morte.
O perito italiano Fabrizio Anniballi, que tampouco esteve diretamente envolvido no exame dos restos do autor chileno, afirma à DW que “com base na informação disponível publicamente, é improvável que Pablo Neruda tenha morrido de botulismo”.
“Tenho lido que lhe deram uma injeção na barriga e que, depois de seis horas, ele morreu. Seis horas em geral não bastam para desencadear botulismo e causar a morte do indivíduo. Para avaliar melhor a plausibilidade de botulismo, seria desejável saber de seus sintomas antes do fim.”
Sua hipótese é que os cientistas encarregados da autópsia descobriram DNA decomposto de esporos da Clostridium botulinum. Isso não significa necessariamente que Neruda foi envenenado, mas apenas que ele tinha algumas bactérias na boca ao morrer.
Portanto a investigação continua. Segundo a advogada Elizabeth Flores, querelante e representante da família do poeta, “esta luta começou, e sempre se buscou estabelecer a verdade do que ocorreu com Pablo Neruda”.
“Aqui há uma questão de família, mas, independente disso, esse é o falecimento de um Prêmio Nobel, de um ex-embaixador, um ex-senador, candidato presidencial, de um homem que aglutinava a cultura e o pensamento crítico e político ao redor de si.”
Em 15 de fevereiro foi entregue a última revisão pericial do boletim elaborado pelos laboratórios estrangeiros. Notícias iniciais de que ele confirmaria o envenenamento do poeta foram rapidamente desmentidas. Agora cabe à juíza Paola Plaza dar seu veredito sobre se Neruda foi envenenado ou não.