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“Incidente Cutter”: a tragédia nos Estados Unidos dos anos 1950 que resultou em vacinas mais seguras

Alguns lotes de vacina contra pólio fabricados pelos laboratórios Cutter eram defeituosos. (Foto: Getty Images)

Os americanos foram saudados com uma boa notícia em abril de 1955: as autoridades de saúde anunciaram que a primeira vacina contra a poliomielite (também conhecida como pólio ou paralisia infantil) estava pronta para ser utilizada.

No fim da década de 1940, cerca de 35 mil pessoas se tornavam paralíticas a cada ano nos Estados Unidos em decorrência dos surtos de pólio.

Nos anos 1950, a doença ainda estava em circulação, sendo na época responsável por entre 13 mil e 20 mil casos de paralisia anualmente, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês).

Todo verão, época em que o contágio era maior, os pais trancavam seus filhos em casa para evitar que contraíssem o vírus.

Às vezes, o transporte e o comércio entre as cidades afetadas pela pólio também eram restringidos.

Por isso, a chegada da vacina foi recebida com um grande alívio.

No entanto, apenas um mês após seu lançamento, aconteceu o que ficaria conhecido na história como “incidente Cutter”, forçando o programa de imunização a ser suspenso por alguns meses.

Esse episódio foi fundamental para melhorar os sistemas de fabricação e a regulamentação governamental sobre as vacinas. Mas, antes disso, causou uma grande tragédia.

Vacina eficaz

A poliomielite é uma doença viral que afeta o sistema nervoso e pode causar paralisia, atingindo principalmente crianças com menos de 5 anos.

Atualmente, é considerada erradicada em quase todo o mundo, graças a programas de vacinação em massa — a doença persiste apenas no Paquistão e no Afeganistão.

Em 1935, os cientistas começaram a tentar desenvolver uma vacina contra a pólio. Até que, em 1953, o cientista americano Jonas Salk conseguiu criar uma vacina a partir de cepas inativadas do vírus causador da infecção, o poliovírus.

As cepas foram inativadas por meio da aplicação de formaldeído em culturas do vírus desenvolvidas em células de rim de macaco.

Em 1954, foi realizado um amplo teste clínico da vacina de Salk, que envolveu cerca de 1,8 milhão de crianças nos Estados Unidos, Canadá e Finlândia.

Foi “o maior teste clínico de uma droga ou vacina na história da medicina”, de acordo com a Agência Americana de Drogas e Alimentos (FDA, na sigla em inglês).

Os resultados foram positivos, e as autoridades americanas anunciaram em abril de 1955 que a vacina tinha apresentado uma eficácia de 80% a 90%.

Assim que a vacina foi aprovada, seis laboratórios foram licenciados para produzi-la. Entre eles, o Cutter Laboratories, na Califórnia.

Lotes defeituosos

A empresa farmacêutica lançou 380 mil doses do produto no mercado, mas alguns lotes eram defeituosos: continham acidentalmente cepas ativas do vírus.

Como resultado, foram confirmados mais de 260 casos de pólio — com e sem paralisia — associados à vacina e a transmissões comunitárias a partir de crianças vacinadas, de acordo com o FDA.

Este número não incluía, no entanto, o restante das pessoas que relataram outros sintomas da infecção.

De acordo com o médico Paul Offit, autor do livro The Cutter Incident – How America`s First Polio Vaccine Led to the Growing Vaccine Crisis (“Incidente Cutter: Como a primeira vacina contra pólio levou à crescente crise das vacinas”, em tradução livre), cerca de 40 mil crianças vacinadas desenvolveram dor de cabeça, rigidez na nuca, fraqueza muscular e febre (sintomas de pólio); aproximadamente 164 crianças ficaram paralisadas; e 10 morreram.

A maioria apresentou paralisia nos braços (onde havia tomado a vacina), apesar de a doença paralisar as pernas, detalha Offit no livro.

Diante do surto, em maio de 1955, as autoridades de saúde pública dos EUA recomendaram “a suspensão de todas as vacinações contra pólio até que fosse concluída uma vistoria minuciosa em cada fábrica e uma revisão dos procedimentos para testar a segurança da vacina”, de acordo com o FDA.

Embora tenha havido outros incidentes com vacinas antes e depois deste episódio, Offit afirmou à BBC News Mundo que o incidente Cutter “foi provavelmente o pior desastre biológico da história dos EUA”.

Mas, no outono de 1955, o programa de vacinação foi retomado.

“As pessoas naquela época não questionavam tanto as coisas quanto agora, elas confiavam mais nas autoridades”, diz Kinch à BBC News Mundo.

Além disso, “elas tinham mais medo da pólio”.

A vacinação deu resultado, e a incidência de pólio nos EUA “caiu drasticamente” a partir de 1955. A doença foi erradicada nacionalmente em 1979.

A vacina a partir do vírus inativado, criada por Salk, continua a ser usada nos EUA, enquanto outros países utilizam uma vacina que é administrada por via oral, chamada popularmente de “gotinha”.

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