Transcorridos quase 50 anos da morte de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), familiares do compositor e cantor porto-alegrense pretendem inscrever mais uma façanha na trajetória do mestre da dor-de-cotovelo: a inclusão do nome do artista entre os indicados ao Oscar de trilha sonora de 1945. O motivo é o uso de uma versão instrumental – não creditada – do samba “Se Acaso Você Chegasse” em um musical norte-americano que figurou entre os concorrentes à estatueta na categoria.
O plano foi deflagrado recentemente com o envio de uma carta à Academia Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, em Hollywood (EUA), iniciativa que ainda repercute no noticiário cultural de alguns dos principais jornais brasileiros. No texto, um dos herdeiros pede que o gênio nascido no hoje extinto bairro da Ilhota (imediações do Ginásio Tesourinha) passe a constar na nominata.
Trata-se, porém, de um gesto tão ambicioso quanto descabido. Essa é a avaliação do jornalista e pesquisador gaúcho Marcello Campos, autor da biografia “Almanaque do Lupi”, publicada pela prefeitura da capital gaúcha em 2015 e responsável pela redescoberta desse episódio até então ignorado por especialistas no assunto e até mesmo pelos descendentes do próprio artista.
“A atitude da família é bem-intencionada e certamente ajuda a manter em evidência a obra de Lupicínio, mas não encontra respaldo nos critérios de indicação ao Oscar”, explica Campos, autor de outras publicações e reportagens sobre personagens da música popular surgidos na capital gaúcha. “O problema é que a adaptação orquestrada do samba utilizada no filme não atende aos critérios.”
Ele prossegue: “As categorias de Melhor Canção e Melhor Trilha Sonora são restritas a trabalhos originais, ou seja, a composição tem que ter sido feita especialmente para determinado longa-metragem, mas o filme em questão é de 1944 e ‘Se Acaso Você Chegasse’ é de 1937. E ainda há algumas exigências adicionais para ambas as categorias”.
Mas que filme é esse, afinal, e como uma música de Lupicínio Rodrigues foi parar em uma produção de Hollywood? É o que conta em detalhes o jornalista em trecho do seu “Almanaque do Lupi” reproduzido a seguir.
Lady, Let’s Dance
“Foram necessários meros três anos desde a estreia das composições de Lupicínio Rodrigues no mundo do disco para que a sua obra alcançasse a América do Norte. O feito foi alcançado com a inclusão de ‘Se Acaso Você Chegasse’ na lista de músicas brasileiras transmitidas pela rede de emissoras da National Broadcasting Corporation (NBC) durante a tradicional Feira de San Francisco, em 1939.
Mas a glória maior talvez tenha sido a inclusão de uma versão instrumental do samba no longa-metragem americano ‘Dançarina Loura’ (Lady, Let’s Dance), de 1944. Dirigido por Frank Woodruff, o musical-romântico repleto de cenas de patinação no gelo chegou a ser duplamente indicado ao Oscar, por Canção Original e Trilha Sonora.
Meses antes, Lupi recebera através da gravadora Casa Victor um pedido de autorização para que o samba-canção fosse gravado nos Estados Unidos, fato já relativamente corriqueiro após dez anos de carreira – afinal, ele costumava assinar papéis desse tipo e muitas vezes o assunto morria no esquecimento.
O filme só chegaria às telas de Porto Alegre em dezembro de 1946. Surpreso com os cumprimentos de camaradinhas que haviam notado a sua música na fita em cartaz na Rua da Praia, ele correu para o Cine Roxy (próximo à Uruguai). “Nem queiram saber como eu estava nervoso!”, declarou aos jornalistas que o acompanhavam na primeira sessão da noite.
A verdade é que seus pensamentos estavam mais ocupados pelo temor – quase obsessivo – de que os arranjadores deixassem irreconhecível o seu samba-canção. Não menos apreensivo ficaria se soubesse que o seu nome não figurava nos créditos artísticos ou bancários, exceto por alguns prováveis trocados da editora musical que havia autorizado a adaptação.
No entanto, a ficha finalmente acabou caindo para o fato de que um trabalho seu havia chegado a Hollywood, ainda que discretamente. Aproveitando que o mesmo filme também estava em cartaz no cineteatro Coliseu (na Praça Oswaldo Cruz, próximo à esquina da rua Voluntários da Pátria com Pinto Bandeira), Lupi promoveu grande noitada artística com exibição da fita e shows musicais no palco”.