O advento da inteligência artificial (IA) generativa, capaz de criar vozes sintéticas que diferem muito pouco das humanas, ameaça os empregos de locutores, dubladores e narradores de audiolivros que, ironicamente, alimentam dia a dia essa tecnologia que poderia acabar com o seu sustento.
“Estamos lutando contra um monstro muito grande”, diz o ator de dublagem e locutor Mario Filio. Esse mexicano, que deu voz a Will Smith e a personagens como Obi-Wan Kenobi (Star Wars), Ursinho Pooh e Miss Piggy (Muppets), afirma que nunca recebeu royalties pelo sucesso de dublagem da animação Madagascar, em espanhol. Mas isso é uma questão menor diante do desafio que representa a IA generativa, que cria textos, imagens, vídeos e vozes utilizando conteúdo existente, sem intervenção humana.
Para enfrentar essa batalha, sob o lema “Não roubem nossas vozes”, cerca de 20 associações e sindicatos de Europa, EUA e América Latina criaram a Organização das Vozes Unidas (OVU), que incentiva projetos de lei para harmonizar a inteligência artificial (IA) e a criação humana.
O uso “indiscriminado e não regulamentado” de IA pode extinguir um “patrimônio artístico de criatividade que as máquinas não podem criar”, adverte a OVU. Os artistas da voz já competiam com a ferramenta Text To Speech (TTS), que faz a locução de textos, mas com uma dicção robotizada, usada em assistentes como Alexa e Siri.
Amostra
Mas a IA adicionou o ‘machine learning’ (aprendizagem de máquina), com o qual um software pode comparar uma amostra de voz com milhões existentes, identificando padrões que geram um clone. “Ela se alimenta com vozes que estivemos gravando por anos”, explica a mexicana Dessiree Hernández. “Falamos do direito humano de usar a voz e a interpretação sem o seu consentimento.”
Eles defendem a criação de leis que impeçam que seus registros de voz sejam usados para treinar a IA sem o seu aval e imponham “cotas de trabalho humano”, detalha o locutor colombiano Daniel Söler de la Prada.
Mas a IA abre infinitas possibilidades. No futuro, por exemplo, a voz real de Will Smith poderia ser ouvida em diversos idiomas, mas com a entonação de um dublador, aponta Filio. Não seria ruim se gerasse emprego e o público ganhasse com isso, “mas precisamos receber de forma justa”, assinala Filio, denunciando a “falta de proteção” de uma associação que trabalha de forma independente.
O alarme também soou em Art Dubbing, onde são feitas dublagens de conteúdos cristãos, depois que quatro clientes solicitaram orçamentos para utilizar vozes sintéticas. Seu fundador, o mexicano Anuar López de la Peña, agora está diante de um dilema: “Ou me adapto ou vou desaparecer”, embora não esteja disposto a sacrificar o talento humano.
Filio deixou de gravar para muitos clientes por se negar a ceder “tudo”. “É hora de apoiar meus colegas”, afirma, com a certeza de que a IA “não poderá” substituir as pessoas porque simplesmente “não tem alma”.