Quinta-feira, 14 de novembro de 2024
Por Luiz Carlos Sanfelice | 7 de agosto de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Nas férias de julho do ano de 1947, então no 2º ano primário, acompanhei meu pai e seu ajudante Wilson, num automóvel Ford 1937 de duas portas equipado com um potente motor V-8, numa viagem de negócios que incluía as então vilas de poucas casas (hoje Municípios progressistas) de Santo Augusto, Redentora, Faxinal da Guarita, Turvo, Miraguaí e Tenente Portela, todas no RS.
Nós morávamos em Ijuí. Eu ainda não tinha completado 8 anos e foi a 1ª de uma centena de viagens que fiz nos anos seguintes com meu pai caixeiro-viajante. Estradas miseráveis, caminhos barrentos e tortuosos com atoladores que quase tragavam os veículos que tinham que ser retirados pela força de uma junta de bois (ninguém tinha trator naquela época) e diversas travessias de pequenos rios que se fazia a vau, entrando com o carro na água e ‘rezando pra não molhar a distribuição da faísca’ porque se molhasse o carro ‘apagava’ e com certeza teria que passar a noite por ali mesmo esperando secar e pedir pouso no galpão de algum morador das redondezas.
Ao longo de alguns anos isso aconteceu diversas vezes, especialmente, quando depois de uma chuva o nível da água subia um pouco. Depois pontes começaram a ser construídas e as travessias a vau e as barcas, foram sendo esquecidas.
Fiquei em grande expectativa quando soube que passaríamos pela reserva indígena da Guarita e eu iria ver e conhecer um índio. Índio para mim era o que tinha visto num ou dois filmes americanos – até então não tinha visto mais que isso – homens grandes, cabelos longos, grandes e bem formados peles vermelha, altivos, montando lindos cavalos malhados e uma ou mais penas presas na cabeça e um Grande Chefe Cacique com um cocar lindo que ia até os pés.(que significavam medalhas, distinções, hierarquia e poder).
No terceiro ou quarto dia de viagem, chegamos finalmente no portão fechado que dava acesso à Reserva. Meu coração batendo acelerado sentia doses maiores de adrenalina derramar no meu sangue, num incrível misto de curiosidade, medo e ansiedade. Um frenesi de emoções.
O automóvel foi andando e vi algumas pobres choupanas e crianças nuas na beira do caminho até chegarmos a um abrigo grande, redondo, coberto de capim e paramos. Quando me disseram que aquelas pessoas mal vestidas, maltrapilhas embaixo de um telheiro sujo, envolvidas num cheiro que era um misto de fezes e álcool, eram os nossos índios, a decepção foi grande e inevitável – pois o que vi era um amontoado de bugres, pequenos, sujos, beiçudos, crianças ranhentas…
Uma decepção e ainda fico sabendo que “brancos” espertalhões “roubavam” pinheiros (araucárias) da Reserva – caminhões e caminhões – e pagavam com cachaça e algumas moedas… Acho que foi meu primeiro choque real de quanta crueldade tem no ser humano…
Eu era uma criança e além do choque e da decepção, senti uma enorme pena daqueles farrapos humanos (isso que era 1947e era isso que eu via ) e imaginei: o que estará pensando em sua glória junto a Deus, o lendário Sepé Tiarajú olhando esses seus irmãos nessa miséria e aquelas vetustas e históricas ruínas que ele defendeu com seu sangue para preservar seu povo…?? Não fazia muito sentido o famoso e histórico grito de guerra: “Go Yvy Oguereco Yará”.
Parei em pé, na frente de um daqueles homens e fiquei quieto olhando para ele, e ele começou a falar comigo naquele seu linguajar arrevesado. Custei a adaptar meu ouvido mas educadamente respondi as coisas infantis que ele perguntou. Então eu quis saber “coisas” deles e o índio teve educação, paciência e atenção e me contou como viviam, o que comiam, como caçavam, que flechas usavam, como é que miravam e acertavam e como enfrentavam bichos maiores, tipo jaguatiricas, gato do mato, lobo-guará e onças.
Pra tudo tinham “um jeito”. Aprendi muito e gostei do que ouvi, mas saí de lá “loco de pena” daquela gente. Até ganhei uma figura mística talhada a canivete, em madeira. Vi, entretanto, que nosso índio não era nada (nem de longe) parecido com a imagem do índio que os filmes americanos mostravam. Uma cruel decepção e tive que refazer, na minha cabeça de criança, a conceituação da realidade que conheci.
Agora, passados que são perto de 78 anos dessa visita e das imagens que, então conheci, senti que aparentemente, nada mudou – até piorou – pois o que veja andando pelo centro de Porto Alegre, literalmente jogados nas calçadas, são índias e as vezes rodeadas de crianças ainda muito pequenas, num deplorável estado de miséria que dói no coração. São eles ou somos nós os culpados?
Quando lembro que esse Povo viveu bem, em comunidades organizadas e disciplinadas, junto às Reduções Jesuíticas e que eram felizes a seu modo, é então inevitável que me ponha a refletir, começando por perguntar porquê razão destruíram, mataram e incendiaram os 7 Povos das Missões? Eram tão fortes assim as razões políticas?
Luiz Carlos Sanfelice, advogado jubilado, auditor – lcsanfelice@gmail.com
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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