Segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 24 de janeiro de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Na década de 50 e 60 eu andei muito pelas vilas, cidades e lugarejos às margens do rio Uruguai, desde o Salto de Yucumã à Barra do Quaraí. Embora um amante da natureza, respeitador do meio ambiente, da fauna e da flora, eu era também grande apreciador da caça, da pesca e de armas. E nas minhas andanças, fiquei sabendo da existência de um cidadão “hermano” argentino que morava do lado de cá do rio Uruguai e que era um exímio caçador/pescador (de bichos grandes) usando apenas uma simples flobé (Flaubert) de 1 só tiro, calibre 22. Mesmo assim, só com essa ‘pobre’ arma, ele havia matado 2 onças e muitos javalis e “pescava” a tiro, enormes peixes. Morava em uma pequena casa no mato, no lado brasileiro, na barranca do Rio Uruguai. Comecei a procurar o homem me informando por todo lado até que um dia soube o local de sua moradia. E fui atrás dele. Encontrei e conheci o “seu” Maicá e churrasqueamos juntos, numa agradável noite de um quente verão no mês de março de 63, junto com mais 2 moradores das vizinhanças que lá estavam para tratar de ‘negócios’. Naquele tempo existia a figura do “chibeiro”, alguém que vivia de um contrabando ‘formiguinha’ trazendo a inigualável farinha de trigo argentino 000 (três zeros) e o azeite “Olavina” em pequenos garrafões de 2,5 litros. Ele me contou que o lado argentino, nas Províncias de Corrientes, Missiones e Entre Rios, com exceção de uma estrada (Ruta) que cortava aquela região do país de ponta a ponta, no sentido norte/sul, o resto era uma enorme, linda e inteiramente virgem floresta “com muita caça”. Quase intocada.
Contou-me que inúmeros pequenos riozinhos, com água absolutamente cristalina, era berço de muitas variedades de peixes e que próximo a embocadura com o rio Uruguai, enormes peixes, especialmente, a Piava e Grumatã, em dias quentes no verão, vinham “dormitar” quase a flor d’água, e que era com apenas um tiro de flobé, que se “pescava”, facilmente, dando um tiro de 22, na cabeça do enorme peixe.
Ele contou que sempre que queria carne, ele atravessava o rio na sua canoa com motorzinho de popa de 5 hp, amarrava a canoa na margem, adentrava um pouco no mato, subia numa árvore e atocaiado ficava esperando algum peixe grande parar para dormitar naquela água quase gelada ou passar uma boa caça – podia ser uma paca, ou um cateto, ou um javali, e matava apenas com um tiro na cabeça, no olho se possível, e trazia pra casa como boa carne para alguns dias. Ali postado não fumava nem bebia nada de álcool para que sua presença não fosse ‘sentida’ pelo animal. E que umas poucas vezes apareceram Onças (e lá ainda tinha muitas) e que muitas o viram, olharam, beberam água e foram embora, mas que por 2 vezes ele foi “focado” e “marcado”. Tentou espanta-las mas talvez elas estivessem com fome e ficaram olhando pra ele e ameaçando subir (onça sobe em árvore). Ele evitava ter que matar, mas também não estava a fim de ser o jantar da fera, e passadas horas nesse ‘namoro’ e não vendo alternativa, naquelas 2 ocasiões, ele “dormiu na pontaria” para acertar o olho (um ou outro) da onça. Mirava e acertava e a onça estrebuchava e morria…(veio-me a imagem de um sniper) Na modesta casinha dele, tinha 2 tapetes de couro de onça, com a cabeça e a boca com aqueles poderosos dentes à mostra. Ele mesmo havia tirado o couro, estaqueado e feito os tapetes. Conheci a flobé. Era de fabricação alemã. Limpa, linda, mecanismo perfeito e brilhante e coronha lustrosa. Caprichoso. Ele se dava ao luxo de acertar no olho da caça pois assim, disse ele, era “morte certa sem judiaria”.
Seu Maicá me contou que, por enquanto, ele não podia voltar a morar com a família, “do outro lado”, porque ele tivera que ‘mandar pro inferno’ um bandido que molestara sua filha…e que fora “uma coisa muito bem feita acabar com ele”…e que isso “deu respeito” à ele, sua família e à sua honra. Mas “que teria que passar ‘uma temporada’ morando ‘por a cá’, até a poeira baixar” e então, depois, ele voltaria pra casa, na Argentina. Fiz esta visita, bebemos, comemos e satisfeito me despedi. Nunca mais voltei a vê-lo nem notícias tive mais dele, mas guardei pra sempre a singular história de vida desse homem e sua imagem serena, dura e ‘inexpugnável’.
Não me atrevi a perguntar como foi que ele acabou com seu desafeto. Será que foi com 1 tiro de 22… no olho? Nunca soube…
Na próxima edição de “Lembranças que ficaram… (7)” contarei a história da piazada que viu a “Onça desistir de beber água”… e o que foi o memorável cagaço que levaram.
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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