Terça-feira, 19 de novembro de 2024
Por Tito Guarniere | 12 de setembro de 2020
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
O livro Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves – preciosa indicação do sociólogo Remy Fontana – é uma obra imperdível. Trata da vida da personagem Kehinde – Luísa Andrade da Silva, tendo ao fundo o painel histórico, o contexto social, econômico e político do século XIX – e mais precisamente a escravidão, a chaga que afeta a vida do Brasil até os dias de hoje.
A Kehinde é uma heroína de força inquebrantável, coragem e dignidade, de dimensão mítica, tantas as situações assombrosas em que se envolveu, tantas as vezes em que esteve próxima da morte, que caiu e levantou.
A Kehinde é honesta, leal e solidária – é comovente como ela se dá com as pessoas, como ela as congrega em torno de si, e como (em geral) elas são agradecidas e retribuem.
A personagem é hábil, curiosa e inteligente. Logo aprende a ler e escrever – lê Cervantes, os sermões do Padre Antônio Viera. No Rio de Janeiro conhece pessoalmente o escritor Joaquim Manuel de Macedo. Fala o iorubá (língua de origem), português e inglês. Observadora perspicaz, repara e guarda bem os detalhes de cada descoberta – tudo lhe servirá na trajetória.
Forte, vê a mãe ser estuprada e morta, e o irmão assassinado por guerreiros negros no Daomé, na aldeia onde nasceu, na África. Ela, a avó e a irmã gêmea Taiwo, são capturadas por traficantes de escravos, e embarcadas na viagem macabra para o Brasil – sede, fome e doença, os porões fechados do navio, em meio ao odor fétido dos vômitos e excrementos. Na viagem fatídica morrem a avó e a irmã.
No Brasil, ela é estuprada pelo senhor de engenho. Do estupro nasce o filho Banjokô – as divindades predizem que ele teria uma morte precoce e assim acontece. Junta-se ao português Alberto, homem fraco, dado ao jogo e à bebida. Com ele, tem o filho Otomunde que, em uma viagem da Kehinde, desaparece, com o pai. A heroína se sente culpada e passa anos à procura do filho, no Rio, em Santos, São Paulo e Campinas.
A Kehinde tem talento para os negócios. Ganha dinheiro com a venda de cookies, com a padaria que abre em Salvador e depois com a fabricação de charutos. Compra a carta de alforria. Aos 37 anos decide retornar à África, casa-se com um mulato inglês, John, com quem tem um casal de gêmeos. E em Uirá e Lagos (atual Benim e Nigéria) enriquece construindo casas.
Nas quase mil páginas do livro, se desenrolam as peripécias de uma vida incomum. De forma magistral, a autora contextualiza a trama principal, em narrativas incidentais e secundárias. Ana Maria também é mestra em descrever lugares, ambientes, adereços, roupagens, festas, rituais e cerimônias. O livro é um desfile de personagens fascinantes e inesquecíveis, um giro completo e erudito sobre as crenças da Mãe África – a religião como um elo de pertencimento à terra e ao idioma natal, aos grupos étnicos de origem, aos costumes ancestrais.
O romance de Ana Maria Gonçalves é grandioso e eloquente, para ser lido de um fôlego só, como uma novela de suspense. Escrito na primeira pessoa, em linguagem coloquial, como quem dá eco aos pensamentos e lembranças e curso livre aos sentimentos mais íntimos e profundos, é livro para prêmio Nobel de literatura.
titoguarniere@hotmail.com
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.