As ideias fervilhavam por baixo dos fios brancos, finos e revoltos que emolduravam o rosto de Zé Celso. Fundador do Teatro Oficina, a mais longeva companhia teatral do país, o dramaturgo, diretor e ator — que morreu aos 86 anos, na última quinta-feira (6) — cultivava planos e mais planos. Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo.
Não à toa, o paulista de Araraquara perdia o sono: em casa, costumava adentrar as madrugadas ao sabor de livros, cadernos, lápis de cor (ele adorava colorir páginas em branco), taças de vinho, bolas de sorvete de cupuaçu, filmes na televisão, vídeos no YouTube… A rotina era assim, sempre. “Tédio é uma coisa que eu desconheço”, comentou o artista, numa entrevista recente. “Tento dormir antes, mas fico sempre acordado até depois das 4h”, contou.
Zé Celso deixa em aberto, agora, uma porção de sonhos lavrados em vigília. Um deles, a adaptação teatral do livro “A queda do céu”, do xamã Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert, era definido como o mais importante projeto de sua existência. O homem dionisíaco enchia a boca com termos superlativos toda vez que fazia qualquer citação a este trabalho, que ele planejava estrear no segundo semestre de 2023. “Os grandes intelectuais de hoje são indígenas”, ele afirmou, numa conversa que teve, há três anos, com este repórter que aqui escreve. “Sinto que, cada vez mais, estou ficando próximo da minha origem indígena”, acrescentou, à época.
Em abril deste ano, o diretor acompanhou a primeira leitura pública da adaptação da obra, uma espécie de testemunho autobiográfico contra a destruição da Floresta Amazônica. Numa sessão no Sesc Pompeia, em São Paulo, as atrizes Alanis Guillen, conhecida por ter interpretado a personagem Juma no remake da novela “Pantanal” (2022), Lilly Baniwa e Zahy Tentehar apresentaram parte da versão da dramaturgia inédita que Zé Celso vinha escrevendo ao lado de Fernando de Carvalho, com base no livro.
“A gente quis apresentar essa leitura agora, porque o governo Lula tem muito mais a ver com os indígenas, com a nossa grande amiga Sônia Guajajara (atual Ministra dos Povos Indígenas)”, comentou Zé Celso, na ocasião, diante da plateia, enfatizando a frutífera parceria com Fernando de Carvalho. Os dois já haviam realizado antes a adaptação de “Heliogabalo ou O anarquista coroado”, de Antonin Artaud, e — mais recentemente — a montagem “Fausto na travessia brasileira”, releitura da obra do britânico Christopher Marlowe.
Aos poucos, o texto passava por um processo de refinamento — com escolhas que visavam realçar a musicalidade e a poesia contidas nos dizeres de Kopenawa. “Tem uma cena sobre a árvore dos cantos, e que é linda. É uma árvore que produz cantos, e as pessoas vão colher os cantos. Os cantores indígenas vão lá para depois cantar! É como se eles recolhessem, com uma cestinha, os cantos que caem da árvore. Há metáforas muito bonitas…”, ressaltou Zé Celso, que, para esta montagem, trabalharia sobretudo com atores indígenas.
Em paralelo à idealização desse espetáculo, o dramaturgo e diretor se debruçava sobre um estudo acerca da linguagem — carnavalizada, “orgiástica”, dionisíaca, musicalizada — desenvolvida pelo Teatro Oficina há mais de seis décadas. A pesquisa era tocada em colaboração com o produtor e assistente de direção Beito Eiras, e batizada com o título “A origem da tragicomédiaorgya no corpo da música: di-ti-sambo”. Ambos pretendiam transformá-la em livro.
— Estamos em busca do resultado dessa pesquisa. Em “A origem da tragédia”, Nietzsche fala sobre o “espírito da música”. Mas música não é espírito, sobretudo o “ditisambo”, o batuque negro e indígena. A música atinge o corpo, então ela é corpo. Começamos o trabalho inspirados nisso — adiantou Zé Celso, em 2020.
Obra preservada
Apesar de parte do acervo de manuscritos do diretor ter sido comprometida pelo incêndio na casa do artista, em São Paulo, toda a obra teatral e uma parcela significativa de seu trabalho artístico já haviam sido digitalizadas anteriormente.
O incêndio ocorreu na última terça (4) e afetou especialmente o quarto de Zé Celso, que não resistiu aos ferimentos após ter mais de 50% do corpo queimado pelas chamas. O ator Ricardo Bittencourt, que vivia com o artista no mesmo apartamento, disse que as cinzas e a fuligem destruíram parcialmente alguns manuscritos e anotações do artista. Entre os itens danificados, estão cadernos usados por ele na época do colégio, cartilhas utilizadas em seu processo de alfabetização na infância e croquis de algumas peças.
Havia também, no dormitório uma parte da coleção de livros de Zé Celso. Esse acervo foi salvo do incêndio, de acordo com Bittencourt e Victor Rosa, ator que também morava com o dramaturgo. Outra parcela dos livros foi transportada para a biblioteca da casa.
O trabalho artístico de Zé Celso vinha sendo digitalizado nos últimos anos — praticamente a totalidade de sua obra já havia passado por esse processo, que visava a publicação da obra teatral completa do artista. Victor Rosa diz que todas as versões da peça “Cacilda”, por exemplo, foram salvas.