Sei que parcela considerável das pessoas é a favor de que a pessoa condenado em segundo grau não deva poder recorrer em liberdade, devendo ser preso desde logo. As pessoas têm direito de pensar assim. Afinal, a população não é obrigada a conhecer o que diz a Constituição e o Código de Processo Penal…mas o Supremo Tribunal deveria saber que não se pode interpretar uma lei de qualquer modo. Interpretação das leis funciona mais ou menos assim: todos sabem que, no romance Dom Casmurro, a discussão que atravessa os séculos é: Capitu traiu ou não traiu Bentinho. Há duas teses. Mas uma terceira tese como a de que Capitu era um transexual é impossível. Seria uma coisa que Umberto Eco chama de superinterpretação. Pois foi o que o STF fez no caso da presunção da inocência.
Vou tentar falar disso a partir de um conto de Machado de Assis, A Sereníssima República, na qual o Cônego Vargas relata sua descoberta: “aranhas falantes, que se organizaram politicamente”. O Cônego lhes ofereceu um sistema eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos candidatos em sacos. O inusitado ocorreu quando da eleição de um magistrado: “Nebraska contra Caneca”. Em face de problemas anteriores — grafia errada de nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato.
Feito o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska. Ocorre que faltava ao nome a última letra. Mas as cinco testemunhas resolveram o problema. Caneca, o derrotado, impugnou o resultado. Trouxe um grande filólogo, formado por uma famosa Universidade que apresentou a sua tese: “Em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da letra “a” do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi intencional. E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra “k”, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, na mente, “k” e “ca” é a mesma coisa. Logo, quem lê o final lerá “ca”; imediatamente, volta-se ao início do nome, que é “ne”. Tem-se, assim, “cané”. Resta a sílaba do meio “bras”, cuja redução a esta outra sílaba “ca”, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas… Aí está a prova: a primeira afirmação mais as silabas “ca” às duas “Cane, dando o nome Caneca.”
Trazendo essa alegoria ou metáfora para o caso da clareza da lei e da Constituição e aquilo que o Supremo Tribunal fez, pensei em chamar o famoso filólogo que representou os interesses do candidato Caneca. Ele defenderia desse modo a tese que diz que presunção não é presunção. Por exemplo- e o nosso querido Lauro Quadros me lembrou disso – a mesma Carmen Lucia que desempatou o habeas contra Lula foi quem desempatou a votação para salvar Aécio Neves. Detalhes tão pequenos, são coisas muito grandes para esquecer…. Enfim. Mas, vamos ao nosso filólogo sustentando a tese:
-Em primeiro lugar, a palavra presunção começa com a pronúncia “presu”. Fala-se “presu” quando se diz “preso”. Ou seja, já começa preso. E não é fortuita a alocução “pre” antes de “sunção. E o “s” é descartável. Logo, leia-se “pré-unção”. E a palavra “inocência” deve ser lida a partir de uma anamnese epistêmica. Por que “in-ocência”? Simples: “In” quer dizer o contrário ou ausência. Assim como em “in-competência”. “Ocência” qualquer um sabe o que é e não é preciso demonstrar isso. Desse modo, o constituinte quis dizer que o réu, quando condenado em segunda instancia, já é “pre-ungido” pela culpa, por causa da locução “presu” e do “in” de inocência. Assim fica claro: “pre-unção da culpa”. Simples assim. Bingo!