Segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 16 de agosto de 2022
Problemas neurológicos estão entre as complicações mais frequentes da covid fora do sistema pulmonar e afetam mais de 30% dos pacientes. Perda de memória, falta de concentração e atenção, raciocínio lento, sonolência, fadiga excessiva, ansiedade, depressão, dificuldades com linguagem e outros prejuízos cognitivos e cerebrais podem ser efeitos da doença.
As conclusões são de um estudo coordenado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pela Universidade de São Paulo (USP) e publicado recentemente no prestigiado periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Os sintomas costumam ser associados sobretudo a quadros graves, mas atingem também quem teve quadros moderados ou leves da doença, aponta a publicação.
“A covid-19 é capaz de modificar o cérebro e sua estrutura cortical com ou sem a presença do vírus no cérebro. A doença é capaz de fazer isso”, afirma Daniel Martins-de-Souza, professor de bioquímica da Unicamp e um dos pesquisadores.
Nos casos em que o coronavírus chega ao cérebro, infecta principalmente os astrócitos — as células cerebrais mais abundantes e responsáveis por sustentar e nutrir neurônios. Os neurônios que se alimentam dos astrócitos infectados acabam tendo seu funcionamento prejudicado ou morrendo. Os astrócitos são o principal local de infecção e, possivelmente, de replicação do vírus no cérebro.
“Nem todo mundo com sintoma neurológico teve o vírus no cérebro. Às vezes, o sintoma é advindo da inflamação sistêmica por causa da doença”, explica Martins-de-Souza. “Os casos em que o vírus chega ao cérebro potencialmente podem ser mais graves, mas não podemos afirmar isso com certeza”, observa o biólogo, doutor e pós-doutor em bioquímica pela Unicamp e com experiências de pós-doutorado no Instituto Max Planck de Psiquiatria, na Alemanha, e na Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Os pesquisadores continuarão a acompanhar os pacientes do estudo, o que pode trazer mais respostas no futuro, por exemplo, ao verificar se os efeitos neurológicos serão passageiros ou duradouros. A pesquisa também encontrou indícios de correlação entre covid e neurodegeneração, mas os dados são preliminares. Ao continuar a investigação, os estudiosos também querem determinar se o vírus causa alterações semelhantes em outros órgãos, o que pode encurtar caminhos de tratamento.
Estudo
O grupo de 89 pesquisadores da Unicamp e da USP usou ressonância magnética para comparar a estrutura cerebral de 81 pessoas saudáveis à de 81 que tinham se infectado provavelmente com a cepa original do coronavírus Sars-Cov-2 e estavam se recuperando de quadros leves ou moderados de covid há cerca de dois meses.
“Em maior ou menor grau, todos os infectados tiveram alterações cerebrais significativas”, comenta Martins-de-Souza.
Em alguns casos, os exames revelaram atrofia na parte frontal do cérebro, área fundamental para o raciocínio e a atenção e associada com ansiedade e depressão. “Os testes demonstraram mais sintomas de depressão e ansiedade nesses pacientes e conseguimos verificar que não tinha a ver apenas com o fato de estarmos em uma pandemia.”
Parte dos que tiveram a doença também foi submetida a testes de funções cognitivas e teve desempenho pior que os não contaminados. O estudo também analisou a estrutura cerebral de 26 pacientes que morreram de covid e encontrou danos severos em cinco deles. Apenas nos falecidos foi possível identificar ou não a presença do vírus nesse órgão.
Para Pâmela Billig Mello Carpe, neurocientista da área de neurobiologia da aprendizagem e memória que não participou do estudo, um ponto importante do trabalho foi usar diferentes métodos de pesquisa. Por isso, a professora associada da Universidade Federal do Pampa diz que “o conjunto de resultados permitiu chegar a uma conclusão mais precisa e, sem dúvida, contribuiu para a ciência mundial ampliar a compreensão da fisiopatologia da doença”.
Pioneirismo
A pesquisa da Unicamp e da USP foi financiada principalmente pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e durou cerca de um ano e meio. Os trabalhos começaram quando ainda pensava-se que a covid era uma enfermidade apenas respiratória. Os pacientes analisados foram infectados pelo coronavírus entre março e julho de 2020 e, em média, tinham tido a doença há dois meses.
“O que nos despertou esse interesse em particular foi o fato de os pacientes apresentarem perda de olfato, um mecanismo mediado pelo cérebro. Isso nos fez pensar que poderia ter alguma implicação cerebral”, conta Martins-de-Souza Martins-de-Souza.
Antes de saírem no PNAS, os resultados da pesquisa foram divulgados, em outubro de 2020, como preprint, espécie de prévia do estudo ainda sem revisão por pares, antes de ser submetido para publicação num periódico científico. No entanto, a pesquisa só foi publicada oficialmente na semana passada. Martins-de-Souza destaca o fato de o estudo ser 100% brasileiro e trazer descobertas inéditas.