As buzinas constantes, o barulho dos canos de escapamento, as ultrapassagens pela faixa que divide as pistas e as calçadas usadas como atalho são as impressões visíveis e sonoras de um fenômeno que mudou o trânsito brasileiro neste século: o aumento do número de motocicletas. Elas eram 6,8 milhões em 2004 e, este ano, atingiram a marca de 34,4 milhões. Um contingente que pode ser explicado pelo maior emprego das motos em trabalhos como o de entregadores. Mas que também criou novos problemas em um trânsito em que o comportamento agressivo é frequente.
Uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT), da Associação Médica Brasileira (ABM), da Associação Brasileira de Medicina de Trânsito (Abramet) e outras entidades médicas traçou em setembro um perfil dos condutores de motos.
Para 72% dos entrevistados, dos quais a maioria é motociclista, há desrespeito com as regras de trânsito. Mas 76% reconhecem que o contrário também é verdade. Dono do perfil Guerreiro sobre Rodas, Thiago Rocha concorda que há equívocos dos dois lados. O estado Alagoas, em que vive o motociclista, está entre os que mais viram crescer a frota de motos.
“Há motociclistas que arrancam de qualquer maneira e vão cortando o trânsito, e motoristas que fecham sem prestar atenção se tem alguém vindo. Tem muita gente inexperiente, que aluga moto, pega emprestada e vai trabalhar. Uns querem apressar quem está frente, mesmo com o trânsito apertado”, relata Rocha.
Instrumento de trabalho
O uso da moto como instrumento de trabalho, sobretudo no pós-pandemia, é um dos fatores que levaram a maior presença do meio de locomoção nas ruas. Dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) indicam que o crescimento se deu principalmente no Norte e Nordeste. Entre 2004 e 2024, o salto foi de 405% no país. A pesquisa da SBOT apontou que 53% dos entrevistados usam a moto como instrumento de trabalho, e um número similar adotou o meio de transporte há três anos ou menos.
As motos passaram a desempenhar papel fundamental para o incremento do comércio, especialmente nas grandes cidades, onde a agilidade é essencial e o trânsito caótico. A equação permite que principalmente pequenos e médios comerciantes possam competir no mercado que exige rapidez — consequentemente, abrem-se mais vagas de emprego.
Além disso, a utilização de motocicletas contribui significativamente para a redução de custos operacionais, já que o consumo de combustível é geralmente menor em comparação a outros meios de transporte e a manutenção, mais econômica.
“O impacto da pandemia de Covid-19 está relacionado ao emprego. Há um aumento brutal do delivery, o que leva a uma compra considerável de motos”, avalia o professor Ciro Biderman, da Fundação Getúlio Vargas, que destaca a piora do transporte público no país como outro fator a contribuir para o fenômeno. “No Norte e Nordeste, você tem uma renda mais baixa e um clima mais favorável ao uso, por conta do calor. A moto é atrativa em termos econômicos”.
Violência no trânsito
O cuidado, portanto, deve ser redobrado nas pistas. Fechadas bruscas, raspões e bandalhas levam a agressões verbais, o tipo mais comum de violência no trânsito, segundo os motociclistas, pedestres e motoristas ouvidos na pesquisa. A violência pode ser pior.
Musafir lembra de um caso no fim de julho, em São Paulo, em que o motorista de um Porsche avançou sobre o motociclista Pedro Kaique Figueiredo, de 21 anos, que trabalhava como entregador. Igor Ferreira Sauceda, de 27, acabou preso. Ao depor, disse que a moto havia quebrado o retrovisor do carro. “A vida vale um retrovisor?”, questionou Alex Russo Figueiredo, o pai de Kaique, na época. Sauceda é réu por homicídio doloso triplamente qualificado.
A sondagem das entidades médicas revelou ainda que entre os motociclistas que atuam profissionalmente, cerca de 90% relataram que a segurança é afetada pela pressão por entregas rápidas.
Um boletim do Ministério da Saúde do ano passado analisou lesões de motociclistas entre 2011 e 2021 e elencou os principais fatores que contribuem para os acidentes: alta velocidade, falta de capacete, competição e a direção agressiva, além do uso de drogas e álcool e a condução em zigue-zague, estão entre eles.