Domingo, 22 de dezembro de 2024
Por Redação O Sul | 7 de novembro de 2023
A ideia dos realizadores era fugir das convenções do “true crime”, evitando, assim, o protagonismo do criminoso e seu monopólio sobre a narrativa. De fato, o foco de “João Sem Deus: A Queda de Abadiânia” está todo nas vítimas de João Teixeira de Faria, o João de Deus, suposto médium curandeiro, condenado pelo estupro em série de mais de 300 mulheres – estima-se que o número seja três vezes maior, dado o período de atividade do abusador e a quantidade de vítimas que optaram pelo silêncio.
Baseada em fatos, porém acrescida de personagens e diálogos fictícios para melhor efeito dramático, a minissérie de três episódios acompanha o arco de duas irmãs, cujas vidas mudaram drasticamente 17 anos antes, ocasião em que visitaram pela primeira vez a Casa Dom Inácio, o templo-sede de João de Deus, na cidade de Abadiânia, Goiás.
Movida pela fé, Carmem (Bianca Comparato, de “Irmã Dulce” e “3%”) leva a irmã doente à presença de João de Deus, antes de se envolver com um voluntário do templo e se engajar na missão. Ela acaba se mudando em definitivo para Abadiânia, lá constituindo família. Já a relutante Cecília (Karine Teles, de “Que Horas Ela Volta?” e “Os Últimos Dias de Gilda”), vítima de um tumor cerebral, vive uma experiência traumática numa sala fechada com o médium, que conclui a cerimônia lhe oferecendo o que diz ser um fluido milagroso.
A trama, entretanto, se concentra no ano de 2018, mais especificamente nos dias que antecederam a queda de Abadiânia. A imprensa, então, fechava o cerco contra João de Deus, na esteira de múltiplas denúncias de abuso sexual – ao longo da série, uma legenda contabiliza o progressivo número de denúncias, aumentando a cada dia, a cada hora. Nos bastidores da Casa Dom Inácio, o clima é tenso: telefones não param de tocar, simultaneamente a uma suspeita movimentação de dinheiro vivo e registros de contabilidade. João de Deus comporta-se de forma errática, entre explosões de fúria junto a sua equipe.
Entre as irmãs, há a jovem Ariane (Maria Clara Strambi), filha de Carmem, que, frente à onda de denúncias, passa a relembrar episódios estranhos na companhia do “Tio João”, ocorridos quando ainda era criança. Ao confrontar o passado, ela lida com o medo da exposição, uma das muitas perspectivas trabalhadas na minissérie. Além do próprio trauma físico, as vítimas de “João Sem Deus” receiam a influência do médium na comunidade e uma eventual retaliação violenta, quando não atravessam profundos conflitos de fé e ideologia.
As mulheres conduzem a narrativa, mas é a espantosa performance de Marco Nanini que de fato rouba o show. O icônico ator encarna o médium nos mínimos trejeitos: o porte caquético, a entonação dissimulada, as falas ríspidas, autoritárias, pontuadas de erros de concordância. O inspirado elenco inclui ainda as atrizes portuguesas Dalila Carmo e Ana Sofia Martins, e Antonio Saboia (“Bacurau”, “O Mecanismo”) como Lindinho, marido de Carmem e braço direito conivente de João de Deus. A direção é de Marina Person (“Califórnia”). As informações são do jornal Valor Econômico.