Discute a ciência se toda a humanidade procede do mesmo tronco originário. Tudo o que se tem são hipóteses. Conforme a antropologia cristã, no entanto, todos procedemos de uma mesma origem e temos em comum a mesma essência humana. A prescindir de aspectos secundários, como a cor da pele e dos cabelos, dos traços fisionômicos, nossos corpos com seus órgãos são compatíveis e nossa racionalidade compartilhada permite que nos comuniquemos e entendamos. Temos a mesma aspiração à felicidade, por mais diversas que possam ser as expressões desse anseio.
Em uma palavra: raças, etnias e culturas diferentes não conseguem esconder que, no fundo, somos uma única humanidade. Nossas diferenças não são excludentes, mas mostram as enormes riquezas e capacidades que o ser humano traz em si e expressa nas suas maneiras de pensar e agir. Somos uma grande família de irmãos e cada pessoa ao nosso lado é um semelhante a nós, com quem temos em comum o sangue e a alma, as alegrias e angústias e podemos partilhar nossos sonhos e realizações. Mesmo que não saibamos o nome de quem está ao nosso lado, podemos interagir com os outros e dedicar-nos a projetos de interesse comum.
É preciso reconhecer o grande esforço da humanidade na elaboração de uma convivência harmoniosa da grande família humana. Isso levou a organizar sociedades e nações, a edificar cidades e partilhar conhecimentos e realizações culturais, científicas e tecnológicas. Chegamos, atualmente, a uma sofisticação muito grande desse convívio, que se tornou global e também envolve a consciência de direitos e responsabilidades universais. Na teoria, ao menos, nenhum povo ou pessoa é uma ilha autossuficiente. Todos dependemos uns dos outros na realização do bem e nas consequências dos malefícios.
No entanto, a humanidade segue marcada por disputas, violência e guerras fratricidas pelos motivos mais diversos. Enquanto alguns tentam defender e aumentar sua condição já privilegiada, outros ainda vivem na miséria e lutam pela sobrevivência e pelo reconhecimento de sua mais elementar dignidade humana. Com tanta informação disponível, ainda há muita insensibilidade e indiferença diante do sofrimento alheio. Como explicar razoavelmente que continuem a existir escravidões aviltantes de pessoas iguais a nós? Haverá, ainda, quem pretenda pertencer a uma humanidade superior, merecedora de privilégios e com o direito de desprezar os outros?
O papa Francisco, na encíclica Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social (2020), reflete sobre as questões globais que envolvem a dignidade e a responsabilidade de todos os seres humanos, propondo a fraternidade como grande projeto comum a toda a humanidade, a ser realizado mediante o esforço lúcido, corajoso e persistente de todos os membros da comunidade humana. Diante das várias formas atuais de afirmação exacerbada do individualismo, que leva a fechar-se ao outro, a descartar e eliminar o próximo, “sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social. (…) Sonhemos com uma única humanidade, como filhos desta mesma terra que alberga a todos, cada qual com a riqueza de sua fé ou das suas convicções, cada qual com sua própria voz, mas todos irmãos” (n.º 6 e 8).
Não é esse o sonho que o Natal faz reviver em nós, todos os anos? Os cristãos anunciam que Deus é pai da humanidade inteira e de cada ser humano, não lhe sendo indiferentes as nossas angústias, anseios e esperanças. E, porque nos ama infinitamente, enviou seu filho ao mundo para reunir em paz a grande família humana. Jesus não veio com demonstrações de poder e força para intimidar ou impor a sua vontade. Nasceu pobre e despojado, pequenina e indefesa criança, que só desperta sentimentos de ternura e admiração. Não veio dividir, mas buscar o que está disperso e unir o que está dividido. Veio ao encontro de todos e de todos se fez irmão. A representação do menino Jesus, de braços abertos na manjedoura do presépio, é um convite a acolher e a se deixar acolher. Ninguém precisa ter medo de se aproximar nem sentir-se excluído deste abraço fraterno restaurador da paz.
O Natal é a celebração da fraternidade universal e do reencontro da família humana. O frenesi comercial e as inúmeras confraternizações deste tempo não deixam de realçar esse significado da festa do nascimento de Jesus. Por algum motivo, as pessoas sentem-se felizes, querem partilhar sua felicidade e sentem que o mundo pode ser melhor e as pessoas podem ser boas umas para as outras. O Natal de Jesus tem um significado para toda a humanidade, pois Deus ama a todos e sua paternidade se estende a toda a humanidade. A fraternidade humana é um anseio genuíno e tem raízes profundas, mas também é tarefa de todos.
Que a celebração do Natal renove os esforços para alcançar a realização desse sonho, ainda que não seja pleno neste mundo. Cada gesto de fraternidade vale a pena e contribui para que a convivência humana seja um pouco mais aquilo que é chamada a ser.
Dom Odilo P. Scherer – Cardeal-arcebispo de São Paulo