Sábado, 23 de novembro de 2024
Por Carlos Alberto Chiarelli | 2 de setembro de 2023
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Foram dias de contatos múltiplos: com o Alto Comando do Governo (Golbery, Prieto e, até, nos momentos decisivos com Geisel, que nunca deixara escapar a baqueta de Comando). De São Bernardo só vinha a reiteração da teimosia do Comando Sindical local. Sentia-se que o Grupo de Negociadores Sindicais (Vidal, Lula, etc.) queria avançar no ganho salarial para que os trabalhadores não ficassem com a ideia de que a entidade associativa era voltava exclusivamente à ação política classista.
Na primeira semana de iniciativas sindicais buscando abrir diálogo com o governo, houve um arremedo de negociação preliminar. Seria como no futebol o aquecimento dos atletas. De qualquer maneira, passada a semana que gerara certo alvoroço porque as notícias deram maior destaque ao assunto do que ele rigorosamente merecia. Por duas vezes recebi a delegação sindicalista em Brasília, no meu gabinete. Os sindicalistas estavam lá. Pediram audiência para o grupo de 4 participantes: Vidal, o Presidente, dois dirigentes sindicais metalúrgicos de chão de fábrica e um jovem – mais para gordo do que para magro; hoje, o notório Lula, que se apresentou como membro do conselho fiscal e não disse logo a que veio.
Tivemos as duas reuniões brasilienses de cerca de 40m cada uma e, ao final da segunda, fizeram que eu entendesse que traziam uma proposta de alteração salarial, que seria o tema prioritário do sindicato e dos trabalhadores da Volkswagen em geral. Deixaram em meu poder um documento, devidamente rubricado por eles, e que não levava em conta uma hierarquia normal no serviço público. O documento era dirigido a mim, a quem pediam que entregasse para o Presidente Geisel. No fim daquele dia, o ministro Arnaldo Prieto me deu carona até o apartamento e pediu-me detalhes do ocorrido nas conversações semanais. Passei-lhe uma cópia do documento que os sindicalistas me haviam entregue e combinados que ele levaria ao Palácio para entregar ao Presidente.
Já em casa, atendi um solidário telefonema do ministro Golbery, chefe da Casa Civil, que me convocava para ir, na segunda-feira (quanto mais cedo, melhor), ao seu gabinete e contasse detalhes da conversa. Para minha surpresa, disse-me, também, que já recebera a incumbência de levar-me, depois disso, ao Presidente Geisel. Na verdade, era um momento em que todos se sentiam vitoriosos. O sindicato, porque lograra abrir caminho para a negociação; para o governo, o fato de que a iniciativa fora dos trabalhadores e de maneira adequada ao modelo de conversação sindical.
Foi aí que conheci Lula. Idelogicamente, dele sempre discordei. Nunca dei-lhe meu voto. Nem ao PT. Reconheço, por justiça, que, no entanto, desde conhecê-lo, identifiquei um sindicalista em formação acelerada. Como político, é outra coisa e noutro lugar.
O Sindicato de São Bernardo peticionara à Volkswagen um aumento salarial em média de 15% e deixara claro em documentos, que se transformaram em panfletos, que, se a organização empresarial não concebesse o solicitado, declararia greve imediatamente.
Setores radicais, minoritários dentro do exército, insistiram em que se tivesse um governo repressivo. Geisel optava e optou claramente por uma política de firme disposição de negociar. No entanto, até a noite da última quinta-feira, parecia que havia números conflitantes. O sindicato queria aumento salarial de 15%; o governo ofereceu 10%, o que levou os trabalhadores a reunir-se e refazer a sua proposição, fixando-a em 13%.
Na quinta-feira, no fim da tarde, chegamos a concretização de uma proposta que eu acreditava ser nova e harmonizadora. Com apoio de Prieto, discuti a nova fórmula com o ministro Simonsen. Deu todo apoio. Procuramos o ministro Golbery, militar com forte densidade social.
A nossa fórmula foi levada ao Presidente pelo chefe da Casa Civil que sentiu a importância do que se tratava após examinar o material que se lhe confiara. Avisou que na sexta-feira de manhã anunciaria sua diretriz interna e chamou os ministros envolvidos no processo para que comparecessem nesse horário ao Palácio. Fui convocado para lá estar. Um pouco antes, às 10h, conversaria com Golbery, que era quem, no ministério, tinha mais influência sobre o Presidente.
Nunca escrevi uma narrativa contando o episódio de relato. Cheguei à conclusão do seu valor histórico. Hoje se sabe o quanto era importante que vencesse a negociação, a diplomacia: isto é, a força do direito e não o direito da força. A democracia estava fecundada.
A nossa fórmula fizera chegar a noite anterior ao Presidente uma alternativa que parecia a única que realmente resolveria: oferecer 13% de abono (não de salário) aos trabalhadores. O pagamento de abono não descontaria valores do salário, nem para o INSS ou Imposto de Renda ou quaisquer outros encargos. O abono valia por um ano e poderia ser prolongado por acordo entre as partes interessadas por mais um ano. Com tal proposta homologada pelo Presidente, e que passou a ser conhecida pelos ministros, tiveram eles de assinar um documento secundando ao Presidente e confirmando sua adesão a essa nova fórmula. Decidiu-se que eu conversaria com os sindicalistas de São Bernardo, com a proposta oficial na mão, e iria a São Paulo às 7h de sábado. Sugeri que tínhamos alguns imperativos intransferíveis – por exemplo, a greve estava marcada para domingo de tarde e de noite.
O governo estava decidido a que essa última fórmula era a única que o Presidente aceitaria. Havia um tema político em torno do assunto. O exército, durante o regime militar, estivera sempre, e de forma progressiva, dividido entre duas correntes: a que seguia Castelo Branco (como Geisel, por exemplo) e a que tinha como seus líderes Costa e Silva e a tríplice gestão dos ministros militares (episódio da trombose Costa e Silva). A primeira linha tinha por objetivo acelerar rumo à democracia, através da estrada larga da negociação com os sindicatos, partidos e outras corporações importantes. Era majoritária. A segunda, que era minoritária, entendia que o objetivo era ser crescentemente agressiva, usando o direito da força e proibindo práticas que vigoravam em todo mundo democrático.
No caso em pauta, enquanto o grupo de “Geisel” estava envolvido totalmente na ideia do acordo com os trabalhadores que, por sua vez, não deflagrariam a greve, o grupo oposto estava acelerando ardilosamente estratégias para impedir o êxito da negociação e criar o clima de tensão e, se possível, de intervenção das forças de segurança.
Fui a São Paulo sem qualquer acompanhante e no mais puro sigilo. Marquei com a comissão de São Bernardo um encontro no aeroporto de Congonhas. No restaurante, às 9h30, cheguei 30m antes, mas eles já estavam lá. Quando iniciamos o diálogo, eles tomaram pelo caminho que já tínhamos utilizado. Eu deixei que falassem e aí fiz a proposta do abono. Salientei que todos os panfletos colocados deveriam estar retirados até as 15h de sábado. De outro lado, se tal ocorresse, um documento cuja redação eu lhes exibi, no qual se garantia o abono no percentual estabelecido, seria publicado até as 17h30 numa edição especial do Diário Oficial da União sob a forma de portaria ministerial e homologada por decreto presidencial.
Com relação a empresas e sindicatos que se mostrassem dispostos a adotar o modelo do abono para vigorar nas relações laborais dentro da empresa, tal legislação estava disponível. O abono valia para quem quisesse usá-lo.
Feita a leitura e a explicação, eles ficaram surpresos positivamente. No fundo do restaurante havia um grupo de mais 10 líderes sindicais de São Bernardo que acompanharam o movimento dos negociadores. Eu sugeri que acelerassem e que isso se podia conseguir se eles se reunissem imediatamente com aqueles companheiros que estavam ao fundo para que aceitassem ou não a proposta. Aguardaria 30m. O tempo passou, não havia celulares, eu consegui ligar pelo telefone público e dei informações gerais para o ministro Prieto. Lhe avisei que seria importante que o palácio desse ordens aos trabalhadores do Diário Oficial e que se mantivessem articulados porque teriam um trabalho importante a fazer a tarde com hora marcada.
Às 10h10, eles voltaram; isto é, todo o grupo, e após alguns comentários e sabendo da limitação de tempo, o presidente do sindicato declarou que estavam dispostos a assinar o documento que eu trouxera, onde estavam escritos todas as clausuras ajustadas e lhes disse que passaria a suas mãos um documento assinado pelo Presidente e pelo ministro do trabalho sob a forma de portaria que continha todos os itens que estavam explicitado no deles.
Assinamos e combinamos que o Diário Oficial tinha que sair até as 18h e eles teriam que, simultaneamente, ter feito a limpeza da propaganda de greve e de quaisquer materiais de crítica ao governo. Eles todos me disseram que não era um acordo perfeito, mas um acordo muito oportuno. Eu lhes disse praticamente a mesma coisa. Descemos todos juntos e a imprensa não sabia de nada. Meu voo sairia logo, eles ficaram me acompanhando até o embarque.
P.S.- Tanto o Diário Oficial da União saiu em edição especial com o anúncio do abono, como às 18h15 não havia um sequer papel do sindicato anunciando greve ou criticando o governo. Ao contrário, colocaram no pátio da fábrica da Volkswagen uma faixa dizendo: o acordo foi feito.
Carlos Alberto Chiarelli foi ministro da Educação e ministro da Integração Internacional
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