Difícil pensar na estrela hollywoodiana como ícone feminista e defensora da justiça social. Figura metamórfica, porém, ela era muito mais que curvas e voz sussurrante. Novo filme semificcional convida a repensar Marilyn. Autodeterminação, aceitação do próprio corpo e consciência da injustiça social não são qualidades normalmente associadas à Hollywood dos anos 1950, no pico da carreira da atriz Marilyn Monroe. Porém a “bomba loura”, vista como a encarnação do símbolo sexual, na verdade se rebelou com diversas tendências sociais de sua época.
Após o lançamento no 79º Festival de Cinema de Veneza em 8 de setembro, e em seguida nos cinemas nos Estados Unidos e Reino Unido, estreou em escala global nesta semana, na plataforma de streaming Netflix, o filme semibiográfico “Blonde”, dedicado à estrela morta em 5 de agosto de 1962, aos 36 anos, após uma superdose de barbitúricos.
A produção já chega aclamada por numerosos críticos – embora outros veículos, como o Chicago Sun-Times, tenham considerado “Blonde” “esticado” e “exagerado”, lamentando que “apresente a vida de Marilyn Monroe como um pesadelo sem alegria”.
Sua protagonista, contudo, a atriz de origem cubana Ana de Armas, recebeu elogios unânimes. Segundo a revista de cultura Variety, Armas “nos dá nada menos do que o que viemos esperando: ela se transforma em Marilyn Monroe”; enquanto para o periódico britânico The Guardian ela está “simplesmente extraordinária” no papel.
Do abuso à bidimensionalidade
Apesar de recriar fielmente cenas icônicas da carreira da atormentada atriz – como aquela de “O Pecado Mora Ao Lado”, em que um ventilador de metrô faz esvoaçar seu vestido branco – o filme escrito e dirigido por Andrew Dominik é principalmente ficção, tomando seu título emprestado do romance de Joyce Carol Oates, lançado em 2000.
A intenção era mergulhar no hiato entre Norma Jeane Mortenson – nome real da atriz – e Marilyn, a persona criada por ela. Em suas próprias palavras, Dominik quis, acima de tudo, explorar a tensão entre a vida interior da atriz e a “memória coletiva” que se tem dela.
Com a mãe se debatendo com problemas de saúde mental e o pai de identidade desconhecida, Norma Jeane cresceu em lares adotivos, onde sofreu abuso sexual. Sua tumultuada vida privada tem sido minuciosamente dissecada há décadas: casamentos fracassados, abortos espontâneos e provocados, abuso de drogas, boatos de casos amorosos com magnatas da indústria cinematográfica e políticos importantes.
Profissionalmente, as curvas sedutoras, a voz sussurrante – estratégia sugerida por um fonoaudiólogo para superar a gagueira – e os papéis altamente sexualizados que lhe davam, a reduziram a uma personagem bidimensional, primordialmente a serviço das fantasias masculinas.
Uma das cenas mais chocantes da quase biografia sugere que Monroe tenha sido violentada pelo então presidente John F. Kennedy, com quem se dizia que tinha um romance consensual. Embora sem base em registros reais, a sequência enfatiza a vitimização da atriz e seu rebaixamento como objeto sexual.
O site americano The Daily Beast classificou esta como “a cena a mais terrificante do filme”, o qual define como “um show de horror cheio de imagens desconcertantes”.
Empresária e improvável ícone feminista
Nas seis décadas desde a morte de Marilyn, ela passou a ser saudada como um ícone feminista. De início, como uma ilustração de por que o feminismo é necessário como antídoto para a exploração sexual e objetificação das mulheres. No meio tempo, contudo, ela recebeu conhecimento por suas próprias exigências profissionais e autodeterminação.
Contratada pelo estúdio Twentieth Century Fox, ela estava farta dos papéis de “loura burra” e exigia mais dos roteiros que aceitava. Em 1955, criou a Marilyn Monroe Productions, tornando-se a segunda mulher dos EUA, depois de Mary Pickford, a ter sua própria companhia de produções.
Após muita disputa judicial, Monroe e sua firma obtiveram um acordo que lhe permitiu negociar pagamentos retroativos, salários mais altos e o direito de escolher seus próprios roteiros, diretores e fotógrafos – uma rara vitória para qualquer ator na época.
No artigo Wolves I have known (Lobos que conheci), publicado para a edição de janeiro de 1963 da revista Motion Picture and Television Magazine, ela denunciou o assédio sexual que grassava na Hollywood da época. Assim a jovem de 27 anos descrevia os homens da indústria: “Há muitos tipos de lobos. Alguns são sinistros, outros são simplesmente Charlies ‘vamos-nos-divertir’, tentando conseguir algo por nada, e outros transformam a coisa num jogo.”
Paralelamente, Monroe aceitava com desinibição suas curvas e sua sexualidade. Algo que antes era visto como a antítese do feminismo, mas que hoje a faz ser considerada uma pioneira da body positivity, a plena aceitação do próprio corpo como ele é.