Quinta-feira, 30 de janeiro de 2025
Por Redação O Sul | 28 de janeiro de 2025
No fundo do mar, uma rede internacional de arqueólogos busca em naufrágios memórias da escravidão que marcou a formação da sociedade brasileira. Batizada de “Slave Wrecks Project” (SWP), a iniciativa procura os navios que cruzavam oceanos com seres humanos como carga.
“Cada naufrágio é um fragmento de um grande complexo global, que liga múltiplos personagens. O tráfico escravagista foi um grande projeto de globalização, e os naufrágios são o elemento mais representativo disso”, define Luis Felipe Santos, doutor em arqueologia e presidente do AfrOrigens, instituto brasileiro associado ao SWP.
Santos cita como exemplo o brigue Camargo, um dos últimos navios negreiros a aportar no Brasil, e que o AfrOrigens pesquisa. A viagem foi feita em 1852, quando a prática estava proibida havia dois anos pela Lei Eusébio de Queirós. Para apagar rastros, a embarcação foi incendiada ao chegar em Angra dos Reis. A travessia atlântica foi um empreendimento internacional: o capitão era americano, a tripulação espanhola e os clientes brasileiros.
Elo com o país
O Camargo é um dos sete naufrágios investigados pelo SWP. Não é o único com conexões com o Brasil. O primeiro a ser encontrado foi o São José, cujo destino era o Maranhão e foi a pique no Cabo da Boa Esperança em 1794, durante uma tempestade. Dos cerca de 500 escravizados a bordo, 200 salvaram-se com a tripulação. Os sobreviventes foram vendidos logo depois, na Cidade do Cabo. Dos destroços, os arqueólogos recuperaram grilhões de ferro, roldanas e balas de canhão.
O São José havia sido encontrado nos anos 80, mas foi erroneamente identificado como holandês. A correção só veio em 2015. Quatro anos antes, a descoberta de um relato do naufrágio nos arquivos da Cidade do Cabo trouxe interesse ao caso. A análise de materiais recuperados confirmou a origem do navio, que pertencia a José António Pereira, um dos magnatas do tráfico. Ele foi um dos primeiros a transportar escravizados do Leste da África até o Brasil.
“A família portuguesa dona do São José participava do comércio internacional de escravizados e financiou várias outras viagens de Moçambique para o Nordeste do Brasil. Ela estava baseada em Lisboa, mas possuía negócios que operavam de Moçambique a Angola, na África, passando por Maranhão e Montevidéu, na América do Sul, até Goa”, explica Paul Gardullo, curador do Museu de História e Cultura Afro-Americana, em Washington, uma das instituições que coordena o SWP.
O naufrágio do São José não foi a única perda do português. Em 1796, 300 escravizados escaparam em uma insurreição e outro navio, o Esperança, afundou. Nenhum desses episódios abalou o status de Pereira. Próximo à Coroa, ele batiza hoje uma travessa em Lisboa.
“Parte do trabalho do SWP é ajudar a dar voz a vozes não ouvidas”, diz Gardullo, que reflete sobre a recuperação de artefatos submersos. “Esses objetos são marcos que oferecem uma conexão com o passado e um meio para um novo futuro de compreensão e reparação pessoal e coletiva.”
Na Ilha de Moçambique, outro naufrágio conta uma história de crueldade trágica. Em 1790, o francês L’Aurore afundou em uma tempestade enquanto se preparava para zarpar para o Caribe. Dias antes, os escravizados haviam se rebelado, sem sucesso. Foram trancados no convés inferior. O temor de um novo motim fez a tripulação se recusar a abrir as escotilhas no temporal. Mais de 300 morreram.
A busca pelo L’Aurore teve início em 2017, quando um levantamento geofísico mostrou sua possível localização. A análise dos artefatos recolhidos trouxe novas evidências, como sinais de uma arquitetura naval condizente com o estilo francês e datações de carbono do fim do século XVIII. O navio tem um diferencial em relação aos demais: foi projetado para o tráfico.
“Eram construídas embarcações destinadas somente a essa atividade”, diz o arqueólogo moçambicano Cezar Mahumane, do Centro de Arqueologia, Investigação e Recursos da Ilha de Moçambique, responsável pelo trabalho.
Turismo e conservação
As buscas pelo Camargo estão concentradas em um ponto das águas de Angra, onde está um naufrágio que os pesquisadores acreditam ser do navio. Recentemente, o projeto do AfrOrigens, em parceria com o quilombo Santa Rita do Bracuí, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a UFS, recebeu um aporte de R$ 1,7 milhão do Departamento de Estado dos EUA para a conservação dos vestígios e o desenvolvimento do turismo comunitário. Ainda este ano, é esperado que pesquisadores estrangeiros do SWP visitem o local, cooperem com os trabalhos e participem de treinamentos.
Os brasileiros pretendem pesquisar outros naufrágios em locais como Ilhéus e Maricá. Um deles é a nau Nossa Senhora do Rosário e Santo André, em Salvador. Oficialmente, ia até Goa, na Índia, adquirir itens como porcelana chinesa e voltava a Portugal. Registros, no entanto, indicam que transportava também humanos como mercadoria.
A Coroa permitia que a tripulação trouxesse escravizados como forma de compensação financeira. Apesar disso, ocorria de forma ilegal, trazendo-se muito mais do que permitido. O Santo André tinha pelo menos 130, um número absurdo para um navio que não era associado ao tráfico.