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Norte-americana é a primeira amputada a completar uma corrida no deserto do Saara

Correr ajudou Amy Palmiero-Winters, 46 anos, a superar traumas ao longo da vida. (Foto: Reprodução)

Era o último estágio em uma das mais sacrificantes corridas do planeta. Os competidores, alguns dos quais mal conseguiam caminhar, começaram uma subida íngreme, com 25° de inclinação.

Quando Amy Palmiero-Winters, 46 anos, de Hicksville, Nova Jersey (EUA), começou a subida, a prótese que usa em sua perna esquerda se prendeu sob uma rocha. Um corredor lhe estendeu a mão.

Palmiero-Winters conseguiu passar o obstáculo e estava livre para continuar sua tentativa de se tornar a primeira mulher com membro amputado a concluir a Marathon des Sables (Maratona das Areias), uma corrida de seis dias sobre dunas, rochas, vales secos, platôs de pedra e pântanos de sal, no calor impiedoso do Saara, no Marrocos.

Cerca de 780 atletas, de 51 países, iniciaram a íngreme escalada em fila indiana carregando na mochila o necessário para uma semana no deserto. Comida, saco de dormir, bússola, lanterna, bombinhas para remoção de veneno em caso de picadas de cobras.

Foi a primeira tentativa de uma atleta com amputação nas 34 edições da Marathon des Sables. Palmiero-Winters teve sua perna amputada abaixo do joelho em 1997, depois de um acidente de moto.

Mãe de dois filhos adolescentes, de 13 e 15 anos, ela é uma pessoa disciplinada, com uma persistência admirável. Treinou para o calor do deserto fazendo exercícios em uma sauna. Também carregava os filhos pequenos do noivo nos ombros para se acostumar melhor ao peso da mochila.

Antes da corrida, ela já havia estabelecido cerca de uma dúzia de recordes e façanhas inéditas para atletas com pernas amputadas abaixo do joelho.

Ela queria completar a prova para mostrar que ninguém deve sucumbir a limites artificiais. “No último dia, você quer só deslizar até a linha de chegada, seu corpo não aguenta mais”, disse, falando sobre seu entendimento não apenas quanto às corridas, mas para a vida.

Palmiero-Winters não dedicou muito tempo a estudar a Marathon des Sables. A abordagem dela era abaixar a cabeça e correr, mas essa é uma estratégia arriscada no deserto.

A Marathon des Sables começou em 7 de abril, ainda cedinho. Palmiero-Winters e os demais atletas largaram para uma etapa de 32 km.

Com apenas 9 km de prova, os lábios dela pareciam inchados. O medo era estar sofrendo um choque anafilático, por conta de uma alergia de causa desconhecida. Sua língua estava inchada, sua voz indistinta.

Ela tinha uma seringa de epinefrina para tratar do problema, mas hesitou em usá-la. A Marathon des Sables permite assistência limitada e, se ela usasse a seringa e sofresse um novo ataque, poderia ter de abandonar a prova. Para sua sorte, o inchaço desapareceu e o problema não retornou.

O dia seguinte trouxe um estágio de 32,5 km, que incluía um trecho de 13 km sobre as maiores dunas do Marrocos. Os altos e baixos eram o equivalente cumulativo às escadas de um edifício de 115 andares.

O sol era implacável. O vento ganhou força, lançando areia nos olhos dos atletas. Com a aproximação das dunas, Palmiero-Winters se sentiu desencorajada. Pensar sobre todos os obstáculos que enfrentou na vida a ajudou a reconsiderar sua situação. Afinal, ela sempre conseguiu superá-los.

Depois de quase três horas, Palmiero-Winters ultrapassou o trecho de dunas e parou para consolar uma atleta britânica caída, com bolhas nos pés.

“Também estou com vontade de chorar, mas você vai superar, menina. Respire fundo, e continue a colocar um pé na frente do outro”, ela disse.

No terceiro estágio, de 37 km, a cada passada irregular nos platôs de rocha e areia, o peso da mochila parecia se lançar sobre seu joelho esquerdo e costas. Sua pele começou a descascar. Três unhas de seu pé direito estavam afrouxando. O sol era implacável, e o termômetro em sua prótese marcava 50°C.

Palmiero-Winters começou a questionar se queria mesmo fazer aquilo. Ao remover a prótese, no final do estágio, um de seus colegas perguntou se aquilo era iodo. “Não”, respondeu. “É sangue”. Ela foi à barraca médica, apanhar um desinfetante e uma bandagem. E continuou a caminhar, um passo após o outro.

No estágio mais longo, 76,3 km, as rochas continuavam a desequilibrar Palmiero-Winters. Ela caiu e machucou o joelho direito. Em um posto de controle na marca de 20 km, enxugou as lágrimas dos olhos. Planejava continuar correndo a noite toda.

À tarde, o termômetro marcava 62°C. Antes do sol se pôr, surgiu uma tempestade de areia. Alguns atletas fizeram uma breve parada, mas Palmiero-Winters se manteve atrás da tempestade e começou a aumentar seu ritmo.

À noite, sua visão estava limitada ao círculo de luz da lanterna e as pedras causavam tropeços. No posto de controle dos 50 km, uma enfermeira lhe deu um analgésico, o primeiro da corrida para ela.

Pouco antes do amanhecer, depois de 20 horas e 25 minutos, Palmiero-Winters atingiu o fim do trecho. Após um dia de repouso, mais um estágio, agora de 42,2 km.

Palmiero-Winters mancava perceptivelmente no primeiro posto de controle. O resíduo de sua perna estava quente, marcado e repleto de bolhas. “Está doendo demais”, disse. “Eu queria poder correr”.

No segundo posto, ela estava cambaleando de dor. Perto do final da etapa, acelerou, sorriu e trocou cumprimentos com o pequeno grupo de espectadores.

Patrick Bauer, o diretor da prova, colocou uma medalha em torno do pescoço de Palmiero-Winters, e a abraçou. Tudo que restava era uma etapa não cronometrada, de 5 km na manhã seguinte. Dos 780 atletas que largaram, 740 chegaram ao final da prova.

Palmiero-Winters caminhou mancando até a barraca médica. Foi examinada por um cirurgião ortopédico, que aplicou creme antisséptico e bandagens no resíduo de sua perna. As feridas eram superficiais, mas precisavam de observação.

Ela foi aplaudida quando entrou em sua barraca e riu de um tombo que levou a 800 metros da linha de chegada.

“Quando caio, eu rio, eu choro, eu me levanto”, ela disse. “E sigo em frente”.

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