Domingo, 22 de dezembro de 2024
Por Maria Fernanda Dias Mergulhão | 12 de abril de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Em território brasileiro é admitido se realizar aborto sem a configuração de ilícito penal nas hipóteses decorrentes de violência sexual ou para salvar a vida da gestante, como último recurso na clínica médica, segundo a norma permissiva prevista no artigo 128 e seus incisos do Código Penal.
Essa temática sempre foi sensível em todos os países porque diz respeito ao direito à vida por quem não tem chance de oferecer resistência. Os movimentos feministas asseveram que se trata de livre escolha da mulher, já que o corpo e tudo que dele decorrer integram o âmbito decisório exclusivo da mulher e, de outro lado, os denominados conservadores e, principalmente, as religiões de matiz cristã, condenam a prática por violação dos princípios bíblicos.
Independentemente do agudo debate, não de hoje o Brasil é um país laico, isto é, questões atinentes à religião não devem inspirar, muito menos serem confundidas com a administração estatal. Nesse passo, ressalte-se que o aborto é admitido nas duas hipóteses mencionadas no Código Penal, diploma repressivo vigente em todo o território nacional desde 1940.
Apesar das duas grandes reformas do Código Penal- em 1984 e mais recentemente com o denominado “pacote anticrime”, em 2019-, não deixaram as hipóteses abortivas legalizadas de serem aplicadas, já que se revestem de legitimidade e legalidade.
Não há qualquer provimento jurisdicional do Tribunal maior de controle de constitucionalidade – o Supremo Tribunal Federal – suprimindo a eficácia de qualquer das hipóteses legais de aborto. Ao revés, o STF aumentou o campo de abrangência apontando terceira hipótese admissível de abortamento, que ocorre nos casos de anencefalia – embriões que possuem massa encefálica insuficiente para a constituição do sistema nervoso central, o que culminaria com a inevitável morte logo após o período gestacional. Nesse caso, se apresenta desumano impor o sofrimento materno à mãe quando toda a comunidade científica, com base em evidências, aponta ser caso de gravidez completamente inviável do ponto de vista do nascimento de um ser humano com vida. Afinal, relembre-se que décadas para cá o conceito de morte não se confunde com parada cardíaca, mas de morte encefálica.
Nessa quadra, após o primeiro grande surto da doença conhecida como “dengue”, que assolou principalmente estados do Nordeste brasileiro, muitas gestantes tentaram se valer da terceira hipótese permissiva, por extensão de entendimento jurisprudencial, já que não haveria vida a ser tutelada, nos casos conhecidos como de hidrocefalia dos embriões, sem êxito. Houve casos, no entanto, que o alto grau de hidrocefalia comprometia o nascimento com vida, mas se tratou de exceção à grande regra.
Causa espécie o momento atual porque em nenhuma fase política que permeou o Código Penal brasileiro, que foi publicado no alvorecer da Constituição outorgada de 1937, sobreviveu às Constituições de 1946, de 1967, de 1969 (concebendo-se essa como carta política nacional) até a Constituição da República vigente, promulgada em 1988, sem que existisse questionamento acerca do período gestacional. Sequer durante a ditadura militar, nas amargas lembranças de censura e covardes mortes sob os auspícios da ordem e progresso, não houve imposição de regra restritiva àquelas parturientes que se encontravam nas duas hipóteses de abortamento prevista no Código Penal.
E o momento presente, o que está acontecendo? O Conselho Federal de Medicina emitiu nota proibindo que médicos do Brasil realizem aborto a qualquer gestante que se encontre nas hipóteses acobertadas pela lei, se a idade gestacional ultrapassar 22 semanas de vida! Recobre-se: não se ingressa, aqui, no âmago da admissibilidade, ou não, do aborto nessas hipóteses porque só poderão deixar de serem aplicadas no Brasil por força de controle de constitucionalidade do STF, ora nos sistemas difuso ou concentrado, ou por nova norma legal, de âmbito federal, que suprima sua vigência. Não ocorreu qualquer dessas hipóteses!
Como um órgão de classe federal se sobrepõe à legislação penal brasileira? Causa, realmente espécie, constatar que no Governo Federal vigente há portaria do Ministério da Saúde nesse sentido, já que a primeira revogação foi objeto de intensa pressão de alguns setores da sociedade civil e da Igreja.
Sob o ponto de vista da ciência política, estamos doentes, na verdade muito doentes, porque a inversão da ordem legal e legítima já ocorre sob o silêncio de muitos. Enquanto isso, milhares de mulheres pobres, violentadas sexualmente, que não podem e não querem levar a cabo uma gestação é impedida pelo Estado. E o que falar da vida da parturiente? Deixar de salvá-la, também, pela idade gestacional do embrião? E dos embriões anencéfalos?
Esse discurso político transverso impõe a desordem e coloca uma pá de pá no direito legitimamente constituído como o direito ao aborto nas hipóteses legais. Aqui cabe plagiar o que já foi dito há bastante tempo atrás: “Meu medo não se dá pelos que muito falam (e fazem), meu medo se dá pelo silêncio de quem deveria falar, e fazer!”
(Maria Fernanda Dias Mergulhão)
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.