Sábado, 16 de novembro de 2024
Por Ives Gandra da Silva Martins | 21 de agosto de 2024
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Faleceu na segunda-feira, 12/8, um querido amigo, Antonio Delfim Netto, aos 96 anos. Nem sempre, contudo, fomos amigos.
Em 1968, quando era o todo-poderoso Ministro da Fazenda, do governo Costa e Silva, Delfim Netto pediu o confisco dos meus bens e a abertura de um Inquérito Policial Militar (IPM) contra mim, por entender que os honorários advocatícios que eu recebera de um determinado cliente, cuja defesa estava fazendo com vitórias em primeira instância, eram produto de um sonegador, e pretendeu – foi manchete dos jornais daquela época -, que houvesse o confisco de todos os meus bens. Isso em pleno Ato Institucional nº 5, ou seja, 2 meses depois, em 12 de fevereiro de 1969. Era um período em que das pessoas que respondiam aos IPMs, muitos não voltavam. Foi assim com o jornalista Vladimir Herzog, que morreu durante um IPM.
Felizmente, quem mandava iniciar o inquérito era o ministro da Justiça, que fora meu professor na Faculdade de Direito da USP, o Ministro Gama e Silva. Ele entendeu que os honorários advocatícios não tinham nenhuma vinculação com a vida de quem defendia, até porque eu estava ganhando a questão na justiça. O Ministro Gama e Silva nunca mandou intimar-me. Eu mesmo disse aos jornais, quando veio a notícia, que o Ministro poderia me investigar, pois eu não tinha nada a esconder. Vale ressaltar que os honorários só foram descobertos porque eu os declarara, numa época em que poucos faziam a declaração do que ganhavam na advocacia, pelo menos a declaração completa.
Com o passar do tempo, Delfim e eu passamos a manter relações. Ele mesmo disse que a briga não era pessoal, mas técnica. Ficamos amigos. Em 1986, fundamos a Academia Internacional de Direito e Economia. Entre os economistas, estavam ele, Roberto Campos, Ernane Galvêas, Mário Henrique Simonsen, Carlos Langoni, Afonso Celso Pastore e, entre os juristas, Manoel Gonçalves, Celso Bastos, Moreira Alves, Oscar Correia e outros. Fui seu primeiro presidente.
A nossa amizade cresceu. Em 1986/1987, depois de uma audiência pública feita na Assembleia Nacional Constituinte – ele presidia a subcomissão de reforma da ordem econômica -, chegou a declarar ao Estado de São Paulo que eu seria um excelente candidato a prefeito da cidade.
Escrevemos quatro livros juntos e demos algumas palestras. Sempre tive uma grande admiração pelo Delfim, porque ele tinha precisão gráfica para definir situações com frases que eram cirúrgicas para aquele momento. Era um esplêndido economista, um cidadão absolutamente preciso e pragmático no que fazia. Como cidadão, apesar de ter participado do governo militar, sempre manteve contato com todas as áreas acadêmicas e políticas. Foi deputado e foi titular da FEA, na Universidade de São Paulo. Nosso último encontro foi durante uma palestra que demos juntos, há dois ou três anos, na Fecomercio.
Nunca ninguém entendeu como é que nos tornamos bons amigos depois daquilo que houve em 1968. José Renato Nalini chegou a dizer que o meu baú de ressentimentos não tem fundos, por isso é que a amizade fora possível.
Estou convicto de que o Brasil perdeu um grande economista.
Hoje, o que está faltando no país são bons economistas. Nomes reconhecidos no exterior, grandes expressões, economistas não da área privada, mas sim atuantes no poder público. Roberto Campos Neto é excelente presidente do Banco Central. Mas nós não estamos vendo mais expressões como aquelas que, num determinado momento, chegaram a produzir o Plano Real, a enfrentar a grande crise da década de 1980, como fez Delfim, “sentando” sobre a inflação quando ela chegou a 200% ao ano, após permitir um crescimento exponencial do Brasil como na década de 1970, que nos levou, de um país desconhecido no cenário internacional, a ser uma das potências mundiais na economia.
Mesmo no período inflacionário, o Brasil nunca teve uma “hiperinflação”, mas apenas uma “super inflação” incapaz de desorganizar a economia.
Sinto muito a morte do Delfim. Conversei com Galvêas, pouco antes de ele falecer (aos 99 anos), sobre a importância de Delfim Netto para este país. Ele também foi companheiro do Delfim e fundador da Academia Internacional de Direito e Economia, criada para mantermos um diálogo entre os economistas e os juristas, de tal modo que os juristas entendessem as questões econômicas e os economistas não se aborrecessem com as questões jurídicas.
De fato, um economista como Delfim fará falta ao Brasil, porque mesmo nos últimos tempos, já doente – ele sofria de gota há muitos anos -, ainda quando consultado, tinha aquele humor cirúrgico, que definia situações com brilhantismo único.
Tenho a impressão de que o Brasil está ficando sem suas grandes inteligências, que precisam ser renovadas, mas para isso precisamos que todos pensem menos ideologicamente, e mais pragmaticamente, procurando olhar realmente para a ciência, a cultura, a educação, para o crescimento do país, e não apenas alimentando-se de ódios passados, não permitindo que o Brasil cresça. Que Deus o receba de braços abertos, é o que eu desejo como seu velho amigo.
Ives Gandra da Silva Martins
* gabrielarvcom@gmail.com
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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