Em seu livro, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, o filósofo francês André Comte-Sponville, discorre sobre dezoito virtudes julgadas por ele como essenciais para um bem viver. Sempre incompleta, a busca por virtudes que nos humanizem é uma missão complexa, já que, na condição de seres desejantes e eternamente insatisfeitos, jamais somos plenos do melhor que podemos ser. Contudo, o passeio pelo universo das virtudes de Comte-Sponville nos ajuda a sermos nossos próprios mestres, ao tempo em que abrimos um flanco para o bem que está por ser feito, e esse espaço, num mundo de tantos flagelos, é um convite sempre aberto para o exercício de nossas melhores inclinações.
Nesses dias tormentosos que afligem os gaúchos, não são poucos os exemplos daquilo que de bom podemos produzir. Fiquemos nesse enfoque, já que é notório haver também, em meio à tragédia, vilania e mau-caratismo, tão humanos quanto os gestos de bondade que queremos ressaltar. Destacarei três grandes virtudes que sobressaem em meio à dor, em meio ao desespero que tomou parte da vida de milhões de pessoas após as enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul, muito embora haja muitas outras a esperançar o futuro a partir de gestos presentes.
Nessa homenagem à virtude, tão breve quanto necessária, a generosidade emerge como uma virtude do dom, a primeira a ser invocada quando se reconhece no outro alguém a merecer aquilo que também nos falta, mas que estamos dispostos a doar de forma desprendida. Um agir natural, espontâneo, não em função de determinada lei, além de qualquer obrigação, unicamente de acordo com as exigências do amor, da moral e da solidariedade. Quase, invocando Kant, um imperativo categórico de bondade. Não é preciso testemunhas, dispensam-se os holofotes no agir sereno e verdadeiro de um coração generoso em ação.
É preciso também, em momentos de atribulação, que tenhamos compaixão. Sem compaixão, a frieza, a crueldade, a indiferença e a insensibilidade dominam o cenário. A piedade diante do sofrimento alheio, contudo, mais do que ser uma tristeza que sentimos diante da dor do outro, deve ser uma empatia que nos forneça a energia para o agir, a força para o envolvimento e a determinação para sermos generosos. Nesse sentido, é muito provável que, sem compaixão, falte-nos o ato magnânimo em sua essência. Não basta, assim, a comiseração, é preciso ampliar o sentido universal da bondade para com todos os que sofrem, inclusive os animais, testemunhas silenciosas desse agir humanista e justo.
Por fim, a gratidão, explícita nos olhos de quem foi salvo, de quem recebeu um abraço amigo e uma mão estendida na hora mais dramática. Essa alegria retribuída a tantos milhares de voluntários de todo o País, anônimos, famosos, ricos ou pobres, todos, por um momento singular, ficará emoldurada como um dos mais belos símbolos da tragédia das enchentes. Momento único de comunhão que entrelaçou a dor dos gaúchos com a solidariedade do Brasil.
Agora, ao olhar para frente, surge um novo horizonte, certamente sob um paradigma diferente do atual, incorporando todos os traços humanizadores que a tragédia fez emergir, novas virtudes serão realçadas, como o foram tão distintamente até o momento. A coragem e a temperança, por exemplo, que forjam o modo sul-rio-grandense de ser, foram decisivas até agora no enfrentamento da crise e serão ainda mais necessárias na etapa de reconstrução. O despojamento, a relação emotiva com a sua ancestralidade, raízes e tradições, a força e o destemor do povo gaúcho serão esteios a garantir que essa etapa duríssima será vencida, assim como tantas outras o foram. E, dentre todas as virtudes, sobra ao gaúcho justamente a coragem, a mais universal e admirada de todas. Muitos dizem que nem com as tragédias se aprende e que continuaremos a cometer os mesmos equívocos. Mas pode ser também diferente. A tragédia das chuvas se revelou pródiga para o exercício das virtudes, o que talvez sinalize um aprendizado que não nos condene aos mesmos erros do passado e seja um sopro de esperança para um amanhã melhor.