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Colunistas O fim da legítima defesa da honra pelo STF

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Nas últimas décadas, testemunhamos um conjunto de conquistas e mudanças legais com o objetivo de fortalecer a autonomia feminina e assegurar a igualdade de gênero. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

Nas últimas décadas, testemunhamos um conjunto de conquistas e mudanças legais com o objetivo de fortalecer a autonomia feminina e assegurar a igualdade de gênero.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, que estabeleceu princípios fundamentais de igualdade e não discriminação, foram criados marcos legais que impulsionaram avanços significativos na proteção dos direitos das mulheres, como a Lei Maria da Penha [1] em 2006. No entanto, ainda se fez necessário que o Supremo Tribunal Federal interviesse para eliminar o uso da tese de “legítima defesa da honra” em casos de feminicídio em pleno século 21.

Durante o período das Ordenações Filipinas, em 1603, a legislação aplicada no Brasil colonial previa a morte para a mulher adúltera e para a amante [2]. Com o passar do tempo, o adultério se tornou um tipo penal que violava a honra enquanto bem jurídico, mas as exigências para sua configuração eram distintas a depender do gênero.

Para as mulheres, bastava a mera suspeita de envolvimento com outro homem para que fossem severamente punidas pela sociedade e pelo Estado com duras penas. Por outro lado, para que o homem fosse considerado adúltero, era necessário comprovar uma relação extraconjugal habitual e manteúda, isto é, que sustentasse a amante.

O homem que “tinha sua honra violada” pela suposta infidelidade da esposa e reagisse praticando o homicídio de sua então companheira, costumeiramente argumentava em juízo a “legítima defesa da honra”. Sob essa alegação, muitos se furtavam à condenação ou tinham suas penas atenuadas, resultando na impunidade do crime de homicídio no contexto doméstico.

A persistência dessa abordagem prejudicial ressalta a necessidade de uma mudança jurídica e social para a promoção da igualdade de gênero e garantia de que todas as pessoas sejam tratadas com dignidade e justiça, independentemente de seu gênero.

ADPF 779

Em 2021, ainda no contexto de decisões frequentes de Tribunais de Júri absolvendo assassinos de mulheres, conhecidos como feminicidas, foi ajuizada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, objetivando interpretação conforme a Constituição de dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal.

Por força do direito fundamental à vida e dos princípios da dignidade da pessoa humana, da não-discriminação, da razoabilidade e proporcionalidade, a “legítima defesa da honra” foi apresentada e impugnada como uma tese de lesa-humanidade.

O instituto da legítima defesa, que é uma excludente de ilicitude, caracteriza-se pela conjunção de elementos como uma agressão injusta — atual ou iminente — o direito próprio ou de terceiro, o ânimo de defesa e o uso moderado dos meios necessários.

Na legislação brasileira, porém, não há delimitações expressas e restritas sobre o que é abarcado por esse instituto. Sob a predominância de uma cultura machista, desenvolveu-se a tese da “legítima defesa da honra”, muito utilizada na defesa de crimes ditos “passionais”, motivados por ciúme ou traição em relacionamentos afetivos. Em que pese não possuir base legal sólida, essa argumentação era frequentemente invocada na tentativa de justificar atos de violência, sobretudo contra mulheres.

Aquele que pratica feminicídio, ou usa de violência contra a mulher, como justificativa de reprimir um adultério não está a se defender, mas a atacar uma pessoa de forma desproporcional, criminosa e covarde. Para Fernando Capez, “no caso de adultério, nada justifica a supressão da vida do cônjuge adúltero, não apenas pela falta de moderação, mas também devido ao fato de que a honra é um atributo de ordem personalíssima, não podendo ser considerada ultrajada por um ato imputável a terceiro, mesmo que este seja a esposa ou o marido do adúltero” [3].

Em março de 2021, o Plenário do STF decidiu, por unanimidade, referendar a liminar concedida na ADPF 779 e estabelecer que a tese da “legítima defesa da honra” contraria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

Corroborando com o entendimento do ministro relator Dias Toffoli, a decisão, tomada em sessão virtual, conclui que a tese impugnada não é passível de utilização em qualquer fase do processo penal, nem durante o julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade.

O relator ressalta em seu voto que “a ideia que subjaz à ‘legítima defesa da honra’ — perdão do autor de feminicídio ou agressão praticado contra a esposa ou companheira adúltera — tem raízes arcaicas no direito brasileiro, constituindo um ranço, na retórica de alguns operadores do direito, de institucionalização da desigualdade entre homens e mulheres e de tolerância e naturalização da violência doméstica, as quais não têm guarida na Constituição de 1988”.

Ao se aceitar a possibilidade de arguição da tese de “legítima defesa da honra”, o sistema de justiça afronta também outro dispositivo constitucional, que é uma importante diretriz de enfrentamento à violência familiar e, ao mesmo tempo, um mandado constitucional de proteção a violência, trata-se do §8º do artigo 226 que estabelece:

“O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

Conforme assinala Silvia Pimentel, Valéria Pandjiarjian e Juliana Belloque, “de acordo com os principais tratados e declarações internacionais de direitos humanos das mulheres, os estados se comprometeram a garantir a igualdade e a não discriminação perante a lei e na prática.

Comprometeram-se, ainda, especialmente, a assegurar que se revogue quaisquer leis que discriminem por motivo de sexo, bem como que se elimine o preconceito de gênero na administração da justiça” [4].

Todavia, os índices de violência contra a mulher e feminicídio no Brasil permanecem crescentes. De acordo com levantamento exclusivo do Monitor da Violência, a partir de dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal, o número de vítimas de feminicídios cresceu em 5% no ano de 2022 [5].

Foram 1,4 mil mortes motivadas pelo gênero, totalizando a média de uma mulher assassinada a cada 6 horas, sendo o maior número registrado no país desde a Lei de Feminicídio em 2015 [6].

Nessa trágica realidade, merece destaque o fato de o Brasil ser o primeiro Estado condenado internacionalmente pelo crime de feminicídio. Essa sentença foi imposta pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e responsabiliza o Estado brasileiro pela discriminação de gênero, utilização de estereótipos negativos em relação à vítima e pela aplicação indevida da imunidade parlamentar.

A decisão foi publicada em novembro de 2021 e refere-se ao caso de feminicídio de Márcia Barbosa de Souza, ocorrido em 1998. O acusado era um deputado estadual pela Paraíba, condenado 9 anos depois do fato por homicídio e ocultação de cadáver, mas não chegou a ser preso.

No entendimento da CIDH, a imagem da vítima foi estereotipada durante o julgamento, no intuito de descredibilizá-la e impedir o andamento do processo. Concluiu-se que a investigação e o processo penal tiveram “um caráter discriminatório por razão de gênero e não foram conduzidos com uma perspectiva de gênero”.

Além de uma indenização por dano material e imaterial para a família da vítima, a sentença determina, dentre outras medidas, que o Brasil ofereça treinamento para as forças policiais e membros da justiça, bem como promova conscientização sobre o impacto do feminicídio e da violência contra a mulher.

* “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”

Visando implementar políticas nacionais relativas ao enfrentamento à violência de gênero, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu as Resoluções nº 254 e 255, que resultaram em um grupo de trabalho que elaborou o “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”.

Dividido em três partes, o documento apresenta explicações de conceitos, apresentações de casos e um passo a passo para que os magistrados não interpretem os casos concretos com parcialidade ou marcados pelo machismo estrutural.

Ao apresentar temas transversais para abordar as questões de gênero específicas dos ramos da justiça, o texto ressalta ainda a influência do sexismo, do racismo e da homofobia em todas as áreas do Direito, não se restringindo a violência doméstica.

O protocolo é resultado do amadurecimento institucional do Poder Judiciário brasileiro, que tem acompanhado tendências internacionais, principalmente de organismos e cortes de direitos humanos de âmbito global e regional.

Esse reconhecimento se baseia na compreensão de que as desigualdades sociais, culturais e políticas, historicamente impostas às mulheres, exercem influência significativa na produção e aplicação do direito. Essa abordagem abrangente permite uma análise mais aprofundada de questões de gênero no sistema jurídico e reforça a importância de combater todas as formas de discriminação e preconceito para alcançar uma sociedade mais justa e igualitária.

Em março de 2023, em decisão unânime na 3º Sessão Ordinária do CNJ, as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero passaram a ser de observância obrigatória pelo Poder Judiciário nacional. Assim, os tribunais deverão promover cursos de formação inicial e continuada que incluam, necessariamente, os conteúdos relativos a direitos humanos, gênero, raça e etnia.

Nas palavras da então presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, ministra Rosa Weber, “esse é um tema crucial para as mulheres, e esse é um trabalho primoroso. Vivemos em uma sociedade, infelizmente, impregnada por um machismo estrutural e sistêmico, e precisamos agir contra isso”.

O julgamento com perspectiva de gênero, aliado à extinção da tese da “legítima defesa da honra” pelo STF, representa um significativo rompimento com a cultura de discriminação e preconceito enraizada na sociedade brasileira.

Reforçando esses avanços, em agosto deste ano, o Supremo finalizou o julgamento de mérito da ADPF 779 e firmou o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

A defesa, a acusação a autoridade policial e o juízo estão impedidos de suscitar a tese de legítima defesa da honra ou qualquer outro argumento que induza essa tese nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

Vislumbrando a segurança jurídica e diante da impossibilidade de o acusado beneficiar-se da própria torpeza, o tribunal foi devidamente diligente ao estabelecer que “fica vedado o reconhecimento da nulidade, na hipótese de a defesa ter-se utilizado da tese com esta finalidade”.

Nesse mesmo sentido, acordaram os ministros que “não fere a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri o provimento de apelação que anule a absolvição fundada a quesito genérico, quando, de algum modo, possa implicar a repristinação da odiosa tese da legítima defesa da honra”.

Com isso, fixa-se inadmissível que atos de violência contra as mulheres sejam justificados ou tolerados, assegurando uma abordagem mais justa e igualitária na proteção dos direitos e na promoção de uma sociedade livre de violência e discriminação.

[1] A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) foi editada para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra as mulheres, é considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) uma das três leis mais avançadas do mundo, entre 90 países que têm legislação sobre o tema.

Marcus Vinicius Furtado Coêlho

 

Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.

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