Apesar de inspirar o nome da minissérie de três capítulos, João de Deus não passa de um mero coadjuvante da história. São as irmãs Cecília (Karine Teles) e Carmem (Bianca Comparato) e a adolescente Ariane (Maria Clara Strambi) as verdadeiras protagonistas de “João sem Deus – a queda de Abadiânia”. Os episódios serão exibidos no Canal Brasil, a partir do próximo dia 13. A série, produzida pela Ventre Studio, também ficará disponível no Globoplay no mesmo dia.
Cecília e Carmem buscam a cura para um tumor no cérebro da personagem de Karine em Abadiânia, no entorno do Distrito Federal, onde o médium atendia seus fiéis, acreditando nos poderes de João Teixeira de Faria, 17 anos antes da prisão do médium. Mas enquanto a irmã doente sai do Brasil, abalada com a violência que sofreu, Carmem se torna braço direito do religioso e acredita na sua inocência.
Traumatizada, Cecília vê de Lisboa, em Portugal, as denúncias contra João de Deus pipocarem e resolve voltar ao Brasil para resgatar a irmã. Os conflitos do reencontro das duas ocupa a maior parte das cenas, enquanto a queda do médium é um plano de fundo para a história.
Desde o princípio, a premissa era justamente focar nas mulheres e não na figura do criminoso, que tem uma pena que chega a 489 anos de prisão. “É uma série que conta a história de três mulheres que representam a maior parte dos casos e das relações que as mulheres, em geral, tinham (ou têm) com João de Deus; no sentido de fé, de depositar nele esperança, de ter não só fidelidade mas uma crença incondicional nele; de ter sido abusada e de só perceber que tinha sido abusada pelo contato com o relato de outras mulheres”, apontou a diretora Marina Person.
Apesar de inspirada em fatos reais, a série é ficcional. O que, a princípio, deixou a diretora com um pé atrás. “Quando se trata de uma ficção que tem tantas coisas na realidade, que são fatos terríveis e que envolvem a violência contra a mulher, eu, como mulher, fico receosa de dar um passo em falso, ser injusta, posso ferir alguém, passou muita coisa pela minha cabeça. Em se tratando de João de Deus, não era uma figura que me causava uma curiosidade em especial, eu tinha sim uma aversão a aquilo tudo, era uma figura abjeta e nesse sentido foi difícil pra eu entender o que é que poderíamos fazer com esse material e me envolver de fato com o projeto”, revelou.
Durante o processo de produção, a diretora visitou Abadiânia na tentativa de tentar entender o que levava tantos fiéis ao local. “É um lugar de muita fé, apesar da figura dele que é complexa, para dizer o mínimo. Tem muita coisa ali que cheira a charlatanismo mas também tem muita energia. É inegável que tem um impacto em quem passa por ali. O que eu nunca tive foi a pretensão de discutir se João de Deus tem ou teve de fato o poder de curar pessoas”, afirmou.
Para dialogar com mulheres
Para a construção das personagens, a roteirista Patrícia Curso conta que fez um mergulho nas denúncias das mais de 300 vítimas do médium, mas que preferiu não fazer nenhum tipo de entrevista em profundidade, para que Carmem, Cecília e Ariane não fossem inspiradas em um caso específico. “A gente sabe que foram mais de 300 mulheres, então achamos que a ficção seria uma forma de abrir mais e comunicar para mais mulheres do que escolher uma única história”, contou.
Além do estudo a partir dos depoimentos das vítimas e dos documentários que já foram feitos sobre o caso, o projeto também possui o acompanhamento da Bem Querer Mulher, organização de acolhimento integral a mulheres que sofrem violência, para a leitura sensível dos roteiros e apoio presencial no set durante as filmagens das cenas mais delicadas.
Desde a concepção da minissérie, a ideia era trazer as mulheres para o papel principal e deixar de lado a ideia de que o criminoso ocupa lugar central, contrariando diversas produções do gênero “true crime” que conquistaram o público nos últimos anos. “Isso para mim era quase uma condição. Eu não queria que o protagonista criminoso tivesse um fetiche ao redor dele e ele se tornasse a pessoa mais interessante da série. Isso nos guiou desde o começo”, apontou a roteirista.
Vítima de abuso sexual, Corso acredita que a série é potente e vai dialogar diretamente com mulheres que passaram por situações parecidas. “Começar a ouvir essas histórias fez parte do meu processo de cura. Se a gente conseguir tocar uma mulher que seja, uma pessoa, que passou por isso, a gente cumpriu nosso papel. Porque saber que essas coisas acontecem, mostrar a solidão, isso aproxima. Acho que quem viveu se sente acolhido e talvez tenha coragem de contar essa história e saber que foi uma vítima”, deseja.
O antagonista
João de Deus é vivido pelo ator Marco Nanini, que assumiu a tarefa de ser o antagonista coadjuvante. Ele contou que o personagem foi um desafio. “É um personagem diferente de todo mundo. Foi bastante impactante. É um personagem difícil, uma história difícil, um tema duro”, resumiu.
Nanini revelou que seu processo criativo passou por pensar em como representar o médium sem ser uma caricatura. “Não foi exatamente um grande desafio assim de medo, porque eu já sabia que eu não ia imitá-lo. Eu ia fazer uma postura que simbolizasse ele, mas não queria imitá-lo. É uma presença somente”, explicou.
Ele ainda apontou como a série conduz a discussão sem focar na imagem do médium. “Esse assunto é seríssimo, mas que ficou muito popular. Essa série é um documentário muito bem escrito. O foco são as duas protagonistas, que são as mulheres. Eu faço uma participação como o João de Deus. O roteiro vai por cima delas, do encontro delas com João de Deus. É um enredo interessante de fazer”, comentou.