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O retorno da Revolta da Vacina

Novas diretrizes contam em informe técnico emitido nesta terça-feira pela Secretaria Estadual da Saúde. (Foto: EBC)

A Fiocruz aponta que, em meados de 1904, o crescente número de internações devido à varíola não foi suficiente para convencer a população sobre a importância da vacinação. Na época, corria o boato de que quem se vacinava ficava com feições bovinas já que a imunização consistia no líquido de pústulas de vacas doentes.

O cenário político era instável e as informações sobre a vacinação, pouco claras. Naquele período, o povo foi às ruas para protestar contra a lei que estabelecia a vacinação obrigatória e restrições aos não vacinados, como impossibilidade de firmar contratos de trabalho, realizar matrículas em escolas, receber autorização para viagens, etc. Esse movimento popular ficou conhecido como A Revolta da Vacina. Foi necessária uma segunda onda de varíola para que as pessoas se conscientizassem da importância da vacinação.

Os anos passaram, os vírus mudaram, mas a polêmica permanece. O atual Ministério do Trabalho e Previdência publicou, em 1º.11.2021, a Portaria n. 620 considerando prática discriminatória a exigência pelo empregador de atestado de vacinação. A norma prevê ainda a reintegração ou a percepção em dobro do período de afastamento, além de indenização por danos morais.

O empregador poderá, no entanto, exigir a realização de testes periódicos que comprovem a não contaminação pela Covid-19, com a finalidade de assegurar a preservação das condições sanitárias no ambiente de trabalho, ficando os trabalhadores, neste caso, obrigados à realização de testagem.

A despeito das dúvidas quanto à legalidade do ato, uma vez que trata de matéria que deve ser prevista em lei, no mérito, a portaria reabre a discussão sobre a obrigatoriedade da vacinação. É que nesse surgem questões éticas e individuais relevantes que devem ser bem conduzidas para que o efeito do programa de imunização não se torne um defeito por preconceito ou pelo mau uso da informação.

Segundo a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), apesar do nome, a vacinação compulsória não é verdadeiramente um ato estatal coercitivo, já que não são utilizadas força ou ameaça de sanção criminal em casos de não conformidade. Ainda assim, as normas de vacinação obrigatória limitam a escolha individual de maneiras não triviais, tornando a vacinação uma condição para que a pessoa possa, por exemplo, frequentar a escola ou trabalhar em áreas ou locais específicos.

O respeito às liberdades individuais deve ser perseguido por qualquer Estado democrático e, no Brasil, a ordem jurídica tem na dignidade da pessoa humana o seu valor central. Em decorrência disso, o trabalhador não perde sua condição de pessoa humana quando ingressa nos muros da empresa e está protegido por uma série de princípios, um arcabouço de proteção contra atos que ferem a sua intimidade, integridade, higidez física e mental. Todavia, não há supremacia desses princípios quando entram em choque com outros princípios de ordem constitucional ou com o interesse coletivo. Importante dizer que também não há prevalência do interesse coletivo quando em colisão com o interesse particular. Desse modo, é necessário um juízo de ponderação que aponte, no caso concreto, qual direito prevalecerá e qual será sacrificado, ainda que ambos permaneçam íntegros na sua forma abstrata.

Por exemplo, o trabalhador tem garantido o exercício de direito de greve – previsto no art. 9º da carta constitucional – mas por não se tratar de um direito absoluto, pode sofrer limitações, como aquelas previstas na Lei de Greve e na jurisprudência trabalhista, que exigem a manutenção de um percentual mínimo de postos de trabalho durante a paralisação em atividade considerada essencial à sociedade. Tal limitação decorre da ponderação entre o direito do trabalhador e o interesse coletivo.
Como ensina Robert Alexy – uma das principais referências no estudo dos direitos fundamentais – o indivíduo deve ser levado a sério enquanto indivíduo. Segundo ele, o conceito de levar a sério não significa a impossibilidade de que posições individuais sejam eliminadas ou restringidas em favor de interesses coletivos, mas implica que, para que isso ocorra, deve haver uma fundamentação suficiente.

Nesse sentido, é consenso da comunidade científica que apenas a vacinação de grande percentual da população mundial pode encerrar a propagação do vírus e trazer de volta à normalidade das atividades. A Organização Mundial de Saúde defende que a introdução da vacinação contra a COVID -19 cria e permite oportunidades para a coordenação e colaboração com outros programas transversais, como emergências em saúde, vigilância em saúde, programas para a saúde dos trabalhadores e pessoas idosas, serviços sociais, entre outros.

Convém dizer que a vacinação obrigatória não é novidade trazida pela COVID-19, já tendo sido utilizada no Brasil para outros vírus e legalmente instituída, no país, desde 1975, com a Lei n. 6.259, referente à organização das ações de Vigilância Epidemiológica. Também não é invenção brasileira, considerando que, no âmbito internacional, diversos países têm adotado a exigência do passaporte vacinal, inclusive com viés da saúde ocupacional, como a França, a Inglaterra, os EUA, a Coreia do Sul, o Japão, a Itália e a Grécia.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade da Lei n. 13.979/20 que autoriza, no contexto da COVID-19, a vacinação compulsória, dentre outras medidas necessárias para conter o avanço do coronavírus. A compulsoriedade, no entanto, deve ser implementada por meio de medidas indiretas, como a restrição ao exercício de atividades ou à frequência em determinados lugares, o que inclui o local de trabalho.

Nessa linha, o Ministério Público do Trabalho lançou Nota Técnica n. 05/2021 favorável à exigência da comprovação do esquema vacinal dos trabalhadores e dos prestadores de serviços terceirizados, além da manutenção das exigências de todas as medidas coletivas e individuais de saúde e segurança, sem prejuízo das estratégias de vigilância no enfrentamento do coronavírus no ambiente de trabalho.

Veja-se que não se trata de um incentivo a despedidas por justa causa do empregado, tampouco de desrespeito aos direitos individuais, garantidos constitucionalmente. Ao contrário, trata-se de fortalecer outros princípios constitucionais, como a saúde do trabalhador e da trabalhadora, a redução do risco ocupacional, o meio ambiente de trabalho equilibrado, uma vez é nesse local onde ocorrem os processos de trabalho com o potencial de causar danos à saúde das pessoas se não houver uma adequada gestão de riscos.

Todas essas medidas são fundamentais para o fortalecimento do sistema de vigilância de doenças infecciosas, que não será apenas importante para monitorar a introdução da nova vacina e o seu impacto, mas também para a preparação de futuros surtos, evitando-se que novas ondas sejam necessárias para conscientizar a população como ocorreu com a varíola nos idos de 1900.

Mônica Fenalti Delgado Pasetto

Procuradora do Trabalho Ministério Público do Trabalho em Porto Alegre

Representante regional da coordenadoria de liberdade sindical – CONALIS do Ministério Público do Trabalho

Mestranda em Direito do Trabalho pela UFRGS

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