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O Rio Grande do Sul, reconstruir melhor

Paulo Pimenta, ministro da Secretaria de Comunicação Social, foi eleito pelo presidente Lula como autoridade federal para atuar na reconstrução do Rio Grande do Sul. (Foto: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados)

A iniciativa do governo de nomear uma autoridade federal para coordenar sua assistência ao Rio Grande do Sul foi um bom primeiro passo. Deve ser seguido de outros e levar à institucionalização das atividades de socorro às milhares de vítimas da catástrofe sem precedentes que se abateu sobre os gaúchos e que, infelizmente, a crise climática deve continuar a produzir em nosso país e na vizinhança.

A experiência dos Estados Unidos e de outros países mostra a eficácia das atividades voltadas a socorrer e abreviar o sofrimento dos refugiados e desalojados das grande tragédias. Nessas ocasiões, aqui entra em ação a Federal Emergency Management Agency (Fema), uma unidade do Departamento de Segurança Interna com 20 mil funcionários, que podem chegar a 50 mil, quando necessário. Eles estão distribuídos entre a sede em Washington e em dez escritórios regionais e programáticos. Operam com um orçamento de US$ 30 bilhões anuais e têm autoridade para requerer e obter ajuda de outras agências federais e estaduais, bem como das polícias e das Forças Armadas.

A Fema nasceu de respostas isoladas a grandes desastres naturais a partir de 1803. O presidente Jimmy Carter propôs e o Congresso aprovou a criação da agência na segunda metade dos anos 1970. Respeitada pela população, a Fema nem sempre teve um desempenho estelar. Seu pior momento aconteceu duas décadas atrás.

O então presidente George W. Bush tratou a agência como uma sinecura e confiou-a um correligionário republicano, o advogado Michael DeWayne Brown, um especialista em cavalos árabes que nada sabia sobre a administração de calamidades. Nas primeiras horas após a chegada do Furacão Katrina na região de Nova Orleans, em agosto de 2005, Bush apareceu na televisão e disse que seu amigo “Brownie” cuidaria de tudo e que a população não se preocupasse. O despreparo de “Brownie” ficou logo evidente ante a ferocidade do furacão categoria 5, até hoje entre os cinco maiores dos Estados Unidos.

A demora na tomada de decisões pela Fema custou dezenas, talvez centenas das 1.392 vidas ceifadas pela catástrofe. Brown foi substituído no mês seguinte e a Fema foi reorganizada e fortalecida, tornando-se uma agência de especialistas no combate a desastres, de incêndios florestais a furacões e enchentes, passando por colapsos de pontes e outros equipamentos de infraestrutura que mostram a idade em várias partes do país.

O tamanho já excessivo do setor público no Brasil poderia ser um argumento contra a criação de uma agência dedicada a responder a catástrofes. Mas esse é um argumento defeituoso. A nova repartição, além de servir a um propósito específico, poderia absorver pessoal e orçamentos de outras áreas. E, cumprindo bem as tarefas, certamente ganhará a gratidão e a simpatia da população.

Vendo na televisão as tristes imagens do dilúvio que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, em recente visita ao Brasil, consolei-me na memória de queridíssimos amigos gaúchos, dois dos quais há muito partiram: o jornalista e escritor Josué Guimarães, sua Nídia, os filhos, Rodrigo e Adriana, e a gata Chaimite. Conheci e convivi com Josué e sua família em Portugal em meados dos anos 1970. Ele era correspondente do Correio do Povo e eu, um jovem ainda em início de carreira e de casamento, correspondente da revista Veja em Lisboa.

Nídia e Josué abriram sua casa em Cascais para Eloisa e para mim. Lá passamos sábados e domingos inesquecíveis, confortados pelas receitas deliciosas que Nídia preparava e por doces divinos, como o de mamão com cal virgem e a ambrosia. A primeira viagem de nosso primogênito, Pedro, nascido em julho de 1977, foi a Porto Alegre, para onde Nídia e Josué haviam retornado. Uma foto preto e branco de Pedrinho conosco, tirada por Josué num mirante da cidade, tem lugar especial na paredes de nossos afetos, em nossa casa, em Maryland. Em 1980, quando mudei-me para os Estados Unidos, o casal providenciou para que eu ficasse os primeiros dias hospedado com Clarissa, a filha do grande Erico, e seu marido, David, em McLean, um subúrbio de Washington em Virgínia. E assim aconteceu.

Josué, que Nídia chamava afetuosamente de “Formosura”, era um homem bonito, inteligente e engraçado. Deixou vários livros, entre os quais os mais conhecidos talvez sejam os da trilogia A Ferro e Fogo, sobre uma briga religiosa entre imigrantes alemães que entrou para a História como a Revolta dos Muckers.

Gauchíssimo, Josué gostava de contar vantagem sobre o Rio Grande do Sul. “Paulo, no Brasil, o Rio Grande do Sul tem história. O resto tem geografia”, disse-me ele certa vez. Pois é, Josué, a crise climática trouxe a geografia rudemente de volta ao Estado e testará seu povo durante anos. Pessoalmente, aposto na coragem dos gaúchos ante a adversidade. Gente de fibra, eles escolheram ser brasileiros. Agora, precisam da solidariedade consequente do País e do amparo de boas políticas públicas. Assim apetrechados, saberão reconstruir as áreas devastadas pelas enchentes de maio de 2024 e superarão os efeitos da catástrofe renovados pelo sofrimento, mas melhores e mais resilientes.

Paulo Sotero – jornalista, pesquisador sênior do Brasil Institute no Wilson Center em Washington

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