A Estância é de São Pedro. E São Pedro está incomodado. De repente, a mão de rios avistada pelos colonizadores portugueses tornou-se garra, que com fúria olímpica devastou o Rio Grande. Tornamo-nos cordeiros guachos1, num balido único, procurando, no pampa, a mãe perdida.
Apesar de todas as nossas diferenças e nossos arraigados preconceitos, todos nós, os “pelo duro”, “os pretos”, os “bugres”, os “alemães-batata” e “os gringos” tornamo-nos um só. Amanhecemos lanceiros2 e adormecemos Charruas3 em volta do fogo, em busca de um conforto perdido em algum galpão empoeirado.
Foi como se o mate amargo4 estivesse estado lá, sempre, como um aviso: há que se ter equilíbrio entre o verde da erva e o calor da água. E como se algum desavisado, ao adentrar no galpão, boleando5 o pala6, derrubasse a cuia7. Foi-se a erva, foi-se a água, fez-se o estrago.
Na década de 90, meu pai tinha uma égua tostada que sofreu um acidente num barranco, na velha Chácara da Cascata. Tinha sido presente de um sobrinho querido. O nome, Lixiguana (chuva fina que cai de lado). O veredito foi uníssono, era caso de sacrifício. Não conformado com isso, levei a égua à Clínica da Hípica. Operada por mão de fada, a égua se reergueu. Não serviu mais para montaria, mas embelezava o campo e ainda deu para tirar uma cria. E que baita8 cria. O tratamento foi longo e cansativo. Naquela ocasião, a égua foi rebatizada com o nome de “Esperança”.
Enfim, tem sempre um cavalo envolvido. O cavalo Caramelo não resistiu firme no telhado a troco de nada. Resistiu para lembra-nos que nós, gaúchos, somos centauros. Combalidos, mas centauros.
Chove torrencialmente, mas tornamo-nos abraço. E aos poucos a ele juntaram-se mãos amigas, vindas do Sul, Sudeste, Centro-oeste, Norte, Nordeste, de todos os mais recônditos cantos do Brasil, para lembrarmos que fazemos parte de algo maior e íntegro.
Um abraço oriundo da adversidade, mas que contém aquilo que os gregos denominavam filotimia (apreço pela honra, pela dignidade), a philia (amizade, afeição) e eunoia (benevolência). Estamos crescendo. A cada alvorecer somos mais gaúchos e menos guachos. E vamos reconstruir o Rio Grande. Como dizia o poeta:
“vai-se um ano, mais outro, não me iludo
foram tantas lixiguanas pelegueadas
Eu sinto frio mas apesar de tudo
O meu destino é andar quebrando geada”9
Se nessa pelegueada10 conseguirmos nos tornar um Estado mais atento à mãe terra e à Justiça Social, teremos feito nossa maior façanha. E não seremos apenas o modelo, seremos gigantes.
- Guacho – animal sem mãe, amamentado com leite que não é o materno
- Alusão ao Lanceiros Negros – negros livres ou de libertos pela República Rio-Grandense que lutaram na Revolução Farroupilha.
- Alusão aos índios charruas que habitaram a região dos pampas do Rio Grande do Sul, do Uruguai e do sul da Argentina.
- Chimarrão – infusão de erva-mate que passa de mão em mão.
- Bolear – sentido figurado – alçar, girar.
- Vestimenta típica do gaúcho – Poncho.
- Recipiente de cabaça onde se faz o chimarrão.
- Expressão gauchesca: grande, enorme.
- Jayme Caetano Braun -Geadas
- Luta, batalha, combate
(César Vergara de Almeida Martins Costa – Advogado membro do Conselho Superior do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul)