‘‘Sai todo mundo”, disse Jair Bolsonaro para os poucos auxiliares que o acompanhavam na biblioteca do Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência, no início da noite daquele domingo, 30 de outubro de 2022. As únicas vozes que se ouviam no local ressoavam da TV. Dela, era possível ouvir a notícia de que, com mais de 90% das urnas apuradas, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno já podia ser dada como certa.
Meia hora antes, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do então presidente, já havia jogado a toalha. Sentado à mesa, fazendo contas no celular, vaticinara que a eleição estava perdida. No grupo de WhatsApp de ministros do governo, era possível ler o aviso de Mauro Cid, então ajudante de ordens: ninguém deveria aparecer por lá. Os dias seguintes seriam marcados pela reclusão de Bolsonaro.
Embora evitasse dar declaração pública logo após a sua derrota nas urnas, o ex-capitão do Exército não estava em silêncio nos bastidores. A Polícia Federal concluiu na última quinta-feira que Bolsonaro e aliados tramaram um golpe contra a democracia — que envolvia a prisão de autoridades públicas e até o assassinato do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), do atual presidente Lula e de seu vice, Geraldo Alckmin. Ao todo, 37 pessoas foram indiciadas. Entre elas, o ex-presidente e 24 militares, que negam as acusações.
A conclusão dessa investigação está sob sigilo. Mas, para reconstituir os principais momentos da trama golpista, o jornal O Globo ouviu 28 pessoas que assessoravam e estiveram com Bolsonaro em seus últimos momentos no poder, analisou mais de mil páginas de relatórios da PF, decisões judiciais e depoimentos de alvos de investigações.
Dois dias depois do resultado das urnas, por volta das 7h, o então ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, mal tinha engolido o café quando soube que o senador Flávio Bolsonaro estava na porta de sua casa:
“Você precisa me ajudar a convencer meu pai a anunciar a transição ou vai ser o caos.”
A poucos quilômetros dali, no Alvorada, o dia de Bolsonaro também começou cedo. Antes das 9h, o general Marco Antônio Freire Gomes, o almirante Almir Garnier Santos e o tenente-brigadeiro Carlos Baptista Júnior, comandantes das Forças Armadas, acomodavam-se em uma mesa para uma reunião com o presidente. Completavam o grupo os ministros da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, e o advogado-geral da União, Bruno Bianco.
Durante uma hora, discutiu-se se havia meio jurídico para questionar o resultado da eleição. Chegou-se a debater a possibilidade de usar o artigo 142 da Constituição Federal para fazer uma interpretação forçosa de que as Forças Armadas poderiam “defender as instituições democráticas” atuando como poder moderador, uma tese que o próprio STF já rechaçou. Parte da mesa se mostrava desconfortável com essa possibilidade. Bianco argumentou que não via qualquer espaço para esse entendimento. Freire Gomes disse que não enxergava forma de o Exército agir. Bolsonaro pareceu anuir, mas não desistiu de pensar em uma solução para continuar no poder.
À tarde, a reunião seria mais longa. Sob pressão para reconhecer o resultado das eleições em público, Bolsonaro intimou a sua equipe para uma reunião no Palácio da Alvorada. Entre ministros, parlamentares, filhos e auxiliares, quase 40 aliados se encontraram para debater como seria a sua primeira fala após perder as eleições. Mais de duas horas de discussões depois, o comunicado ficou pronto. O ex-presidente disse que continuaria cumprindo a Constituição. Coube a Ciro anunciar que iniciaria a transição de governo.
No fim daquele dia, um Bolsonaro até sorridente se colocou frente aos ministros do STF, fez piada sobre futebol, segundo um dos presentes. O ministro Edson Fachin saiu da sala dizendo que o presidente reconhecera a derrota nas eleições, ao menos para os integrantes da Corte. Tudo parecia resolvido.
No dia seguinte, porém, Bolsonaro voltou a se encontrar a portas fechadas e sem registro na agenda com os comandantes das Forças, que ficavam cada vez mais desconfiados da intenção do presidente. Entre um assunto e outro, o então mandatário reclamava que era preciso “parar os abusos de Alexandre de Moraes”, de acordo com relatos dos próprios militares tempos depois.
Quem visitava o então presidente na residência oficial costumava dizer que o encontrava cabisbaixo. Era a fase da “depressão”, dizem aliados. Até então, Bolsonaro nunca tinha perdido uma eleição desde 1988. Para piorar a sua frustração, ele também passou a lidar com uma crise de erisipela na perna, que o forçava a ficar constantemente de bermuda e colocar os pés para o alto onde quer que parasse.
Em meados de dezembro, num jantar na casa do então ministro das Comunicações, Fábio Faria, em Brasília, Bolsonaro ouvira do ministro Dias Toffoli, do STF, um apelo para que desmobilizasse os acampamentos em frente aos quartéis. Respondeu que não agiria nesse sentido, uma vez que não havia os convocado. O magistrado, então, sugeriu que ele avaliasse deixar o país para não incitar ainda mais os apoiadores, que estavam inflamados. Na véspera do Natal, Bolsonaro passeou de moto para dar uma última olhada no acampamento no QG do Exército. Um explosivo foi encontrado horas depois por policiais na via de acesso ao aeroporto da capital federal.
Isolado na ideia de encontrar uma alternativa para permanecer no poder, a um dia do fim do mandato, Bolsonaro fez uma “live” pela manhã, chorou e disse que “foi difícil ficar dois meses calado, buscando alternativas”:
“Mesmo dentro das quatro linhas da Constituição, você tem que ter apoio.”
Às 14h02m de 30 de dezembro, Bolsonaro entrou no avião da FAB com destino a Orlando, nos Estados Unidos. De lá veria, em 8 de janeiro, golpistas invadirem as sedes dos Três Poderes. Em pouco tempo, as instituições reagiram. Os vândalos foram presos e condenados. Em 21 de novembro de 2024, a PF concluiu que Bolsonaro não agiu dentro das quatro linhas da Constituição — e foi responsável por arquitetar um golpe. As informações são do jornal O Globo.