Terça-feira, 24 de dezembro de 2024
Por Lenio Streck | 4 de janeiro de 2020
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul. O Jornal O Sul adota os princípios editorias de pluralismo, apartidarismo, jornalismo crítico e independência.
Dá para entender o que é entender? Busco socorro em Clarice Lispector. Entendo-a. Ou não. Mas o entender é tão vasto que ultrapassa qualquer… entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completo quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doido. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
Só sei que nada sei, dizia Sócrates, frase de desafio que ultrapassa milênios. Mas é Manoel de Barros quem mais desestabiliza o meu entender:
“Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar.
Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo- água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios…”
Do Pantanal mato-grossense para Totnau, pertinho de Freiburg, busco Heidegger. Ele dizia: A linguagem é a casa do ser; nessa casa mora o homem; os poetas e os pensadores são os vigilantes (os curadores) dessa casa.
É a linguagem alçada à condição de condição de possibilidade (não, não há erro: é a condição de condição, mesmo!).
Eu não possuo a linguagem. É ela que me tem. Tudo o que sei é garças às palavras que sei.
E tudo o que não sei é em face das palavras que ainda não sei. Por isso, o ser se vela e se desvela. O ser é sempre um ser do ente (na Nada há com o ser, dizia Heidegger. Eis o enigma. Os fenômenos se manifestam. Exsurgem. Põem-se à mão. Pela linguagem.
Hilde Donim dizia: palavras e coisas jaziam juntas. E depois se separaram. E eu acrescento: e estão separadas até hoje. E se tornaram inimigos. Por isso é que o mundo foi transformado em meras narrativas. Eis a praga do niilismo. E do relativismo. Eis porque existem tantas fake news. Platão foi o primeiro a denuncias esse flagelo das falsidades. Das ilusões. As sombras são sombras, berrava. Mas quem diz que as sombras são sombras é apedrejado.
Até hoje é assim. E vai piorar!
Esta coluna reflete a opinião de quem a assina e não do Jornal O Sul.
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