O encontro infame entre o presidente norte-americano, Donald Trump, e o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, mostrou por que negociações diplomáticas não deveriam ser televisionadas aos olhos do mundo. Mostrou também que Trump não queria conduzir negociações diplomáticas, mas avançar rumo a três objetivos: quer extorquir o máximo de recursos da Ucrânia, e Zelenski é um empecilho; quer normalizar as relações com a Rússia, e a guerra é um empecilho; e quer empregar o poderio militar e econômico dos EUA para negociar acordos vantajosos ao redor do mundo, e a ordem multilateral é um empecilho. O bate-boca armado pelo ex-apresentador de reality show foi calculado para abalar esses três obstáculos numa só tacada.
Em sua visão, o sistema pós-Segunda Guerra liderado por Washington só beneficiou parasitas e caroneiros que se aproveitaram dos EUA. Seu objetivo é restabelecer uma era de negociações entre grandes potências, um jogo em que o poderio militar e econômico dos EUA lhe dá, a seu ver, mão forte, e aproveitar a vulnerabilidade de países menores e as condições de dependência de seus aliados para extrair compensações. Ele vê esse arranjo como mais eficiente para manter a paz e fazer bons negócios. Mas o mundo está vendo em tempo real como essa estratégia está o tornando mais perigoso, e também tornando os EUA mais fracos em favor de autocracias antiocidentais.
Zelenski foi a Washington para salvar os destroços de suas relações com Trump e negociar um acordo concedendo a exploração das riquezas minerais ucranianas, em troca de mais armas e garantias de segurança num cessar-fogo com a Rússia. Saiu desmoralizado após um ritual de humilhação, sem acordo, nem garantias, sob o risco de ver o envio de armas dos EUA totalmente bloqueado, e com seu cargo ameaçado.
Trump já havia adiantado concessões à Rússia, negando a entrada da Ucrânia na Otan e admitindo a anexação dos territórios ocupados pela Rússia. O presidente russo, Vladimir Putin, quer ainda a desmilitarização da Ucrânia e um regime fantoche em Kiev. Em uma posição de vantagem no campo de batalha, ele tem agora ainda menos incentivos para fazer concessões, e está mais próximo do que nunca desses objetivos.
Trump não dá a mínima para a soberania da Ucrânia – ela pode um dia “vir a ser russa”, disse recentemente – e entende que a defesa da Europa é um problema da Europa. Quanto à Rússia, até onde é possível visualizar uma estratégia, ele quer uma aproximação para enfraquecer os laços entre Moscou e Pequim. Mas Putin tem poucos incentivos para isso – e depois do entrevero no Salão Oval, ainda menos. A Rússia é profundamente dependente da China, e vantagens que os EUA possam oferecer farão pouco para mudar isso.
Recompensar a maior agressão territorial na Europa desde o fim da Segunda Guerra será um golpe duro na ordem internacional baseada em regras que assegurou uma paz frágil nas últimas oito décadas, e abrirá um precedente para Teerã ou Pequim avançarem em suas ambições sobre vizinhos mais fracos.
Os antecessores de Trump não promoveram a ordem internacional baseada em regras por mero idealismo ou altruísmo. Protegê-la impôs custos aos EUA e o livre comércio prejudicou algumas de suas indústrias. Mas esses ônus foram amplamente compensados por benefícios aos consumidores americanos e à indústria em geral, que pôde importar produtos mais baratos e exportar com segurança. Um mundo sem regras é muito mais favorável ao capitalismo de Estado chinês ou a oligarcas russos.
Zelenski estava certo ao questionar o vice-presidente J. D. Vance: sem garantias militares, não há por que esperar que a Rússia cumpra seus compromissos, como nunca cumpriu antes. Mas pior do que perder uma discussão com seu benfeitor é ganhar uma discussão com seu benfeitor – tanto pior se ele for um narcisista como Trump. O presidente americano estava certo também: o que aconteceu foi profundamente desrespeitoso à memória do Salão Oval e está em curso um jogo que põe o mundo em risco de uma terceira guerra. Só que o maior responsável por isso tudo é o próprio Trump. (Estadão Conteúdo)